“Saci serve para tudo, em particular por mostrar que de negro ele se torna mulato, de violento ou ruim, vira bonzinho, de feio ou apavorante, se transforma principalmente em bonequinho feito para crianças. Como se vivêssemos em uma democracia racial”

Muitos acompanham o esforço de grupos que valorizam a originalidade do chamado folclore nacional. Os mais entusiasmados preferem até dizer “mitologia brasílica”, evocando diretamente Monteiro Lobato no arguto empenho de caracterizar algumas tradições como fundamento do nosso nacionalismo. Desde a publicação do primeiro livro do escritor taubateano “Sacy–pererê: resultado de um Inquérito” (anterior a “Urupês” que saiu no mesmo ano, em 1918), ficou estabelecido o uso de comemorações folclóricas como referência identitária. Essa prática, aliás, foi comum a vários estados nacionais no século XIX, e teve seu auge no Nazismo, momento em que Hitler exponenciou as lendas como base da autenticidade cultural germânica.

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É conveniente lembrar que diversos países, à época, escolheram seus tipos padrões e em locais como o México o sombrero foi eleito como marca, assim como na Espanha a dançarina de flamenco e o touro, e em Portugal o bigode e a Torre de Belém. Por lógico, os ritmos musicais também acompanharam a tendência e assim como o samba, a rumba, a cúmbia, o tango, o fado, se apresentaram como atestados icônicos de “nações”. Ao mesmo tempo, os símbolos nacionais como bandeiras, brasões, cores combinadas e hinos passaram a ser cultivados como prova de amor à pátria. Até hoje tal tradição vigora, e as raízes autoritárias insistem nas mesmas práticas ditas “patrióticas”. É fácil perceber posicionamentos políticos autoritários apoiados no uso dos símbolos nacionais com exaltação à bandeira, ao hino, às cores verde e amarelo.

Entre nós, o funcionamento destas tradições inventadas teve uma sequência histórica original. De largada, o Saci virou moeda de troca de tradições reaquecidas no projeto modernista brasileiro, em particular da década de 1910 e seguinte. Autores como Lobato, Mario e Oswald de Andrade, entre outros, trataram de caracterizar o que seria nacional/brasileiro, ainda que segundo orientações ideológicas diferentes. E nesse arco se deu o constructo da identificação de “coisas nossas”.

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O Saci, no início, não tinha a ver com o que se transformou

Com o passar do tempo, o Saci advindo de lendas difusas, abstratas, foi se reorientando até se transformar em uma espécie de atestado do que somos: bonzinhos, gentis, meio malandros, dóceis. Esse sutil ponto gregário teve, contudo, longa estrada, pavimentada por situações que levaram a uma orientação cultural capaz de dar sentido e forma a figuras que passaram a nos representar. E foi por ocasião do “Inquérito sobre o Saci” (1917/18) que tais condições se materializaram. Lobato, ao reunir narrativas contadas por leitores do Jornal O Estado de São Paulo, assinalou um ponto de inflexão entre a oralidade e a escrita, apresando nesta as variações do “diabrete”. Publicado o “Inquérito”, em 1921 outro livro, dessa feita para crianças, “O Saci”, no qual estavam caracterizadas as imagens figuradas do Saci com algumas marcas que permaneceram: uma perna só, negro, com um pito na boca e gorro vermelho.

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De diabólico, foi adocicado pelo próprio Monteiro Lobato

Também foi Monteiro Lobato o primeiro a adocicar o Saci que, de diabólico, foi logo tratado como malandrinho e, de mau, perverso, sinistro virou arteiro, traquinas, enfim, brasileiro como todos nós. Mas desde o início e promovido pelo próprio criador da figura do Saci moderno, as transformações continuaram até que ele acabasse por ser um dos recursos pedagógicos, lúdicos, mais usados em escolas para crianças. Fica claro, pois, que a maneira política de apropriação do Saci foi das estratégias mais eficientes de nossa cultura, e o uso do ente simpático virou questão pedagógica, postas à mesa da manipulação ideológica da sociedade que, afinal, deveria ser guardiã das transformações. Juntamente com a simplificação para crianças, no universo adulto, o Saci continuou sua trajetória, chegando mesmo a ser adotado como mascote de time de futebol (Grêmio). Convém, aliás, lembrar que tal estratégia ganhou foros de debate público nacional quando Mouzar Benedito, em 2014, o propôs como símbolo da Copa do Mundo e Juca Kfouri o refutou. Isso sem falar de referência a escolas de samba, nome do foguete interplanetário brasileiro, marcas de furadeiras, e de alimentos e bebidas, denominação de estabelecimentos comerciais.

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Versão moderna do Saci, segundo o cartunista Ziraldo

Mas há outro ângulo interessante colado nessa reflexão. Ao mesmo tempo em que Lobato colocava na cena nacional tais situações, alguns dos ensaios fundamentais da brasilidade ganhavam respeitabilidade acadêmica. Duas propostas, ou mitos, vigeram preferências: a democracia racial (Gilberto Freyre) e o homem cordial (Sérgio Buarque de Holanda). Desdobramento natural desses pressupostos, o tal do jeitinho brasileiro de ser (Roberto DaMatta) ganhava corpo explicativo de nossas alternativas comportamentais. Nesse sentido, é cabível a pergunta: mas como o Saci figurou nessa história? E a resposta caminha pela identificação com os atributos que, hipoteticamente, nos distinguem: uma sociedade sem luta de classes, com aceitação racial transitável, bem como cruzamentos de gênero e religião. E vejamos que o Saci serve para tudo, em particular por mostrar que de negro ele se torna mulato, de violento ou ruim, vira bonzinho, de feio ou apavorante, se transforma principalmente em bonequinho feito para crianças. Como se vivêssemos em uma democracia racial, cordialmente teríamos fatores para negociações que, afinal, nos exibem como sem lutas, guerras, conflitos. Pensando nas metamorfoses do perneta, cabe perguntar: Saci nos representa? Somos todos Sacis?