Foi o jornalista Elio Gaspari quem cunhou o termo “ódio chique”. Antes, em inglês, falava-se em nowadays hate. A campanha do presidente eleito nos Estados Unidos, Donald Trump, viralizou o jargão, incendiando ânimos favoráveis a uma suposta manutenção da ordem tradicional. Na oposição, grupos progressistas, argumentavam contra o propalado estado de coisas que, segundo conservadores, deveria permanecer inalterado. Jornalistas do mundo todo, gradativamente, aliavam a modalidade comportamental das elites às novas manifestações de distância dos grupos que, mecanicamente, passavam a ser vistos como “de esquerda”. Assim, velhas bandeiras são levantadas em nome da moral e bons costumes, da família formatada em moldes convencionais, de combate irrestrito ao chamado politicamente correto. Em campanhas que vão desde a explicitação de argumentos arcaicos até o exaustivo “piadismo”, elaborou-se um programa com base no ódio às diferenças e pavor de mudanças.

Trump

Trump viralizou a expressão ódio chique

Assumindo que a luta pelos direitos humanos é baderna, a direita passou a rezar que as causas feministas e antirracistas se constituem em patrulhamento. Por lógico, temas favoráveis às orientações de gêneros, ao aborto, ao controle da imprensa, integram tais prescrições. Dimensão imediata disso, ficam transparentes atitudes machistas, elitistas, anti-cotas, ou contrárias ao reconhecimento das proporcionalidades representativas em instituições. Sem disfarce, emergem os mandamentos do neoliberalismo que carrega em seu enredo a diminuição do papel do estado, o empreendedorismo dos que têm poder, a livre iniciativa e o combate ao acolhimento dos imigrantes.

Há um ardil comum colocado ao dispor dos grupos mais preocupados com a inevitabilidade da agenda contrária. Os dispositivos digitais estão ao alcance de muitos. A internet, nesse sentido, torna-se arma perigosa na disseminação de notícias e na manipulação das ideias convenientes. As redes sociais, sem que se percebesse, se tornaram vias explosivas, em particular porque municiam com embustes fatos e fabricam notícias reverenciadoras de acontecimentos duvidosos. As chamadas fake news tornaram-se donas das “notícias” e passaram a se valer da inocência, ou excesso de credibilidade, dos menos críticos e virou recurso difusor. Não bastassem as informações difamatórias, mais recentemente despontaram as fake fictions, seriados supostamente documentados que remetem a situações maquiadas, dando às supostas tramas impressões continuadas, com começo, meio e fim (ah! Os fins são sempre os esperados). O tal ódio chique, então, ganha vocação legendária e se alimenta da reposição de casos.

É lógico que a direita tem mais campo de ação nessa façanha. Como detentores de programas computacionais potentes, com o domínio das fórmulas decisórias e de propagação, tudo aliado a um público sem preocupação com o juízo ou veracidade, faz com que os opositores, no máximo, consigam desmentidos. Aliás, essa estratégia tem funcionado, pois, mediante a magnitude dos fatos inventados, torna-se praticamente impossível erguer oposições. Mas não basta também detectar o problema. Os exemplos clamam por disputas de esclarecimentos.

Fake news

Tomemos como parâmetro o caso Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro, assassinada brutalmente, em pleno exercício de suas funções políticas. Nem é preciso começar pela incapacidade da polícia na elucidação do crime. Em todos os níveis, a perícia tem se revelado incompetente. Além de ser constrangedor, preside o “deixa disso”. O conteúdo das mensagens a favor do silenciamento do caso vão desde a “mudança de assunto” até as campanhas contra os bandidos sociais eleitos como contraste. Há, porém, um argumento ainda mais venenoso: o novo “arregramento jurídico”. Ter sido ou não, “crime político” é definição vital para a qualificação dos perpetradores. O inaceitável “crime comum” é dos mais graves acintes à norma jurídica. Lembrando que o tema foi abordado, em termos filosóficos por Hannah Arendt, fica claro que qualquer ato contra alguém em situação de defesa de mandatos de representatividade é sim passível de diferenciação de situações ditas corriqueiras. Desqualificar o assassinato da eleita, mulher, negra, lésbica, favelada, em favor da inscrição em atos que se banalizam, infelizmente, é mais uma ofensa ao Legislativo. Equiparar sua morte a de soldados ou de outros civis, brancos ou não, é simplificar tudo e debelar as fronteiras entre a representatividade política e o direito cidadão comum.

Plenário da Câmara dos Deputados durante sessão não deliberativa solene em homenagem à vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e seu motorista, Anderson Gomes, assassinados no Rio de Janeiro. Segurando girassóis, parlamentares do PSOL, PT, PSB e militantes dos direitos humanos marcharam desde a taquigrafia até o plenário da Câmara, onde acompanharam a sessão solene no plenário. Uma grande faixa preta com os dizeres "Marielle, presente! Anderson, presente! Transformar luto em luta!" foi estendida em frente a mesa de trabalhos. Faixa: "Marielle presente, hoje e sempre". Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Os efeitos do “ódio chique” atuam exatamente na seara do “deixa disso”, do “cansei”, ou do “é tudo igual”. É fácil identificar quem maneja as opiniões e os incautos que as divulgam e depois propõem esquecimento. Curiosamente, não foram as oposições que mais alardearam contra as fake news difamatórias da promissora moça morta. Como que vingança de tantos absurdos, quase que instintivamente, como tomando consciência, segmentos insistem no protesto e grita: Marielle vive, está presente, exige resposta e se coloca como alerta. Não cabe “elegância” quando o direito representativo é atingido em sua essência. É sim “crime político” e queremos saber quem a matou.

Mestre JC Sebe Bom Meihy

PS. Depois de escrita a crônica notei a aproximação entre a palavra “ódio” e “ode”. Ironia vernácula, apenas isso.