Houve um tempo em que as pessoas mais românticas —ou mais organizadas —voltavam de viagem com grandes envelopes cheios de lembranças: passagens de trem e de avião, bilhetes de metrô, entradas de cinema e de museu, folhetos, embalagens de balinhas e de chocolates, programas de teatro, contas de restaurantes e de compras variadas, recortes de jornais e de revistas. A viagem continuava em casa, quando esses papeizinhos todos eram amorosamente colados em álbuns junto com as melhores fotos do tour.

Nos Estados Unidos, a partir desse hábito, criou-se todo um universo comercial multicolorido, com papelarias especializadas vendendo adesivos, folhas estampadas, etiquetas, acessórios, papéis artesanais. Em fins dos anos 1990, o scrapbooking virou febre, especialmente entre adolescentes.

Album namorados

Foi moda colocar em álbum imagens de boas lembranças

          É uma ironia imaginar que, naquele exato momento, a tecnologia também começava a se popularizar: em breve, a fotografia tradicional, em papel, seria apenas um retrato na parede.

O scrapbooking, porém, não morreu. É bonito e atraente demais para isso. Papelarias continuam vendendo material e, paralelamente, há milhões de páginas e de imagens para imprimir on-line.

Mas os dias de febre passaram. A própria natureza das nossas lembranças está mudando. No outro dia, Peter Funt lembrou, no New York Times, que tíquetes para antigos jogos de beisebol valem milhares de dólares — mas já não há mais tíquetes no nosso universo digital, em que a entrada para o estádio (e a passagem de avião e o bilhete do metrô) estão em códigos QR no celular.

Temos uma quantidade de material para memória muito maior do que jamais tivemos, porque as nossas mínimas conversas — “Traz pão quando vier para casa!” —estão armazenadas no WhatsApp, e fazemos centenas de fotos por dia, mas na verdade é como se nada existisse para além do momento da sua criação. Muita coisa se perde, de fato, por um ou outro motivo técnico, mas desde que o backup em nuvem se tornou automático, isso já não é uma preocupação.

O que ameaça a lembrança dos dados que geramos e que recebemos é o seu volume descomunal: o Google já é capaz de encontrar fotos de animais de estimação pelos seus nomes, mas não há máquinas de busca nem inteligência artificial que consigam desencavar vagas recordações.

Indiana Jones

Cena do filme de Indiana Jones

          A última cena de “Indiana Jones e os caçadores da arca perdida” mostra a Arca da Aliança sendo fechada num caixote de madeira, que é guardado entre milhares de outros caixotes de madeira iguais, armazenados em pilhas num remoto depósito do governo: naquele momento, temos certeza absoluta de que lá ela jamais será encontrada, nunca, em tempo algum… ainda que esteja em perfeita segurança.

Nossos e-mails e fotos estão em perfeita segurança na nuvem, e em tese estão à nossa disposição quando precisamos deles —mas a questão é que nem só de precisão se fazem as lembranças. Elas tinham o hábito de morar em gavetas e em álbuns e de nos assaltar inesperadamente. Continuarão fazendo isso por mais algum tempo, enquanto as últimas gerações que cresceram num mundo analógico ainda andarem sobre a Terra, mas o futuro do passado já mudou irremediavelmente.

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