A imagem do Jeca Tatu – criação de Monteiro Lobato – tem sido mecanicamente aliada à representação de outro Jeca – produzida pelo comediante Amacio Mazzaropi. As enormes diferenças entre dos dois caipiras perdem forças quando se alia a potente iconografia à figuração dos tipos aproximados pelo imaginário, sempre repetido e pouco questionado. Então, a confundir tudo, a indumentária, o cigarro de palha, a camisa xadrez, o chapéu de palha, a botina, os modos de andar e de falar se combinam de maneira a embaraçar ambos. É lógico que o cultivo desse padrão se nutre de fatores como a pobreza rural, o abandono do camponês, mas também e sobretudo pela recorrência da mesma imagem. Trata-se de um daqueles casos em que a imagem iconográfica comanda a recepção popular.

Hipoteticamente, convém propor dessemelhanças e prezar a sutil mudança de percepções dos procedimentos analíticos. Entre o caipira de Lobato e do Mazzaropi, garante-se, há um universo de alterações que precisam ser avaliadas em seus suportes – livros, filmes e cancioneiro. Linguagens diversas, produtos desiguais, mas por que não são notados? As respostas possíveis sugerem opostos políticos que garantem vida aos dois tipos propostos à discussão pública desde a década de 1910 do século passado.

Uma imagem do que seria o Jeca Tatu de Monteiro Lobato

Enquanto o Jeca lobateano é um doente, “parasita da serra”, inerte e sem graça alguma, trágico mesmo, o segundo é trabalhador, esperto, engraçado, pleno de estratégias de sobrevivência num mundo adverso. Um é vítima, outro é protagonista. O primeiro ponto notável, pois, propõe um paradoxo: a manutenção da aparência mediante a completa alteração do comportamento social dos dois. Mas, o que causaria o silenciamento das discrepâncias que, explicadas, são tão facilmente perceptíveis? Questionando de outro jeito, como captar o sentido de um caipira deprimido e derrotado e a identificação do outro, ágil, sempre triunfante, dono de soluções inventivas. De um lado temos Lobato identificando males históricos, sociais e políticos, incorporados na figura do Jeca tacanho. De outro, temos o inquieto, boa praça, inocente, mas sagaz, tipo no cinema vivido por Mazzaropi.

Lobato apresentou o seu Jeca em artigo no jornal O Estado de São Paulo, de 1914, como “uma espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças”. Pelo lado de Mazzaropi, o que se tem é um Jeca que se sai bem de situações inusitadas, seja na cidade, num terreiro de Macumba, no Japão ou em Bariloche, no inferno, ou no nordeste com Lampião, enfim, um serelepe que sabe, em sua experiência, vencer os sufocos promovidos pelo sistema.

Caipira esperto e inteligente,  o Jeca Tatu de Mazzaropi

O Jeca “mazzaropiado” aprendeu com a experiência individual a responder à secular pressão e, consciente, elabora saídas pessoais oportunas. É na sensatez da vivência com o abandono governamental que o caipira se mostra como tipo cultivado nas telas. Ao contrário, para Lobato que responsabiliza o estado pela circunstância caótica do campo, o camponês é vítima passiva, pesada e malquerida. No caso de Mazzaropi, cabe reconhecer que sua inspiração veio da matriz proposta por Cornélio Pires, que trafegou na contramão de Lobato mostrando os caipiras como “trabalhadores, fortes, tímidos em contato com os da cidade, folgazão e alegre em seu meio, de rara inteligência e argúcia”.

A oposição proposta por Pires ganhou o público, ao que Lobato respondeu evidenciando “uma bonita estilização – sentimental, poética, ultrarromântica, fulgurante de piadas… e o público mija de tanto rir. O meu Urupês veio estragar o caboclo do Cornélio”. É lógico que Cornélio não deixaria isso sem resposta, argumentando que “o nosso caipira tem sido vítima de alguns escritores patrícios, que não vacilam em deprimir o menos poderoso dos homens para aproveitar figuras interessantes e frases felizes como jogo de palavras”.

Cornélio Pires (1884-1958) antecessor de Monteiro Lobato

Ainda que pouco exercitado, este embate projeta discussão que até hoje desafia e isso não apenas no plano das percepções artísticas. Os desdobramentos das duas soluções explicam a ampla preferência pelo Jeca de Cornélio Pires/Mazzaropi, e isto está ligado a um processo de identidade que refuta o pessimismo anterior. Aliás, o próprio Lobato se redimiu reconhecendo que o sucesso das histórias de Pires contadas em “As aventuras estrambólicas de Joaquim Bentinho”, de 1924. Sobre isto, escreveu o próprio Lobato “já comprei as ‘Aventuras’ e li-as e venho dar-te um abraço e ao mesmo tempo confirmar-lhe minha admiração pela tua obra”.

Esperto mesmo foi Mazzaropi que soube juntar as duas situações e se aproveitar da empatia popular em vista dos Jecas e assim produzir um tipo reunindo a imagem crítica que um sintetizou e fundi-la na figura amada do outro.