Tornou-se comum destratar os eleitores de Donald Trump como racistas, misóginos, xenófobos e homofóbicos. É certo que muitos dos que votaram no candidato republicano cultivam estes preconceitos. Basta ver a alegria atual dos adeptos da Ku Klux Klan

O sonho americano hoje é só para banqueiros e advogados, precisamos endireitar este país. Estou cansada de políticos, Trump está mijando nestes bastardos, eles merecem. Minha cidade é um buraco de merda, os empregos  estão sumindo. Votei em Obama, mas agora vou votar em Trump, a gente tem que mudar as coisas. Não estou feliz. A classe média está sendo morta, chegou o momento de cuidar da gente em primeiro lugar.

Estas frases foram ditas por Robert McAdams, Florence Jonhson, Lori Ayeres e Dona Weaver, gente comum, brancos e brancas, residentes em pequenas cidades dos Estados Unidos, ouvidos por Chris Arnade.   Para eles, o “sonho americano” desfez-se há anos.

Hillary

A candidata derrotada Hillary Clinto em campanha

Michael Moore, em julho passado, arriscou prever a então improvável derrota de Hillary Clinton, relacionando alguns fatores coincidentes com as falas dos entrevistados por Arnade:  o desespero dos brancos empobrecidos; o desencanto com a candidata, comprometida com a ordem existente; um desejo intenso de “chacoalhar” as coisas.

Tornou-se comum destratar os eleitores de Donald Trump como racistas, misóginos, xenófobos e homofóbicos. É certo que muitos dos que votaram no candidato republicano cultivam estes preconceitos. Basta ver a alegria atual dos adeptos da Ku Klux Klan. Contudo, como sustentou Glenn Greenwald, tal opinião é rasa  para ajudar a compreender os resultados das eleições estadunidenses. Ele cita um outro jornalista, Tim Carney, que observou  que a maioria  de Trump na Pensilvânia, decisiva, foi conseguida com votos dados anteriormente a Barak Obama. Teriam estes eleitores se tornado misóginos e racistas em tão pouco tempo?

Matt Stoller, no The Atlantic, de outubro passado, lança luzes mais nítidas sobre a complexidade das questões em jogo. Recuou no tempo até os anos 1930, época do New Deal. E mostrou como as políticas democratas de defesa dos trabalhadores e de contenção e regulamentação das tendências monopolistas dos grandes capitais foram capazes de gestar um desenvolvimento econômico e uma distribuição de renda mais harmônicos.  Ampliaram as classes médias e reduziram as disparidades na apropriação da riqueza. Depois da II Guerra Mundial, algumas sociedades europeias, sob liderança da socialdemocracia, exprimindo demandas e pressões das classes populares, levariam ainda mais longe o processo, instaurando o que se denominou de estado democrático de bem-estar social.

Entretanto, a partir dos anos 1970, registra Stoller, o partido democrata passou por uma mutação, voltando sua atenção para a denúncia das guerras externas, em particular a do Vietnã; para os direitos humanos e para a defesa das minorias; para a crítica da intolerância e a celebração da diversidade nos comportamentos sociais e nas opções de vida. Estas tendências, positivas,  foram acompanhadas, contudo, pela crítica ao gigantismo do Estado, considerado ineficiente, e pela defesa da desregulamentação dos fluxos de capitais e do enfraquecimento das leis antimonopolistas.

Construiu-se, em relação a estas questões estratégicas, um inédito consenso entre republicanos e democratas, desde a presidência Jimmy Carter (democrata), passando por Ronald Reagan (republicano), Bill Clinton (democrata),  Bushs pai e filho (republicanos), culminando com Barak Obama (democrata), marcados, todos eles, por políticas permissivas e mesmo estimulantes à liberdade  do grande capital financeiro e de monopólios de todos os tipos. Nem a devastadora crise de 2008 alterou este quadro. Ao contrário, radicalizou-o, pois, em toda a parte, os remédios amargos têm sido impostos exclusivamente aos trabalhadores e às classes populares.

Monopólios cada vez mais livres e “explosão das desigualdades econômicas e territoriais”, eis o quadro que se criou, segundo os estudos de T. Piketty e de J. Stiglitz. Não se trata de um fenômeno específico aos EUA. Acontece em outras regiões e com as mesmas consequências. Na Europa, os socialdemocratas tomaram o rumo dos democratas estadunidenses, favoráveis à desregulamentação indiscriminada, e abandonaram suas bases sociais tradicionais à própria sorte.

As consequências são visíveis a olho nu. O trumpismo inglês assumiu o nome de Brexit. O francês assume as cores do fascismo local, liderado pela sinistra Marine Le Pen. Em outras sociedades europeias, crescem as forças de direita.

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Marine Le Pen, líder da Frente Nacional na França

Enquanto isto, a Sra. Clinton, gentilmente, chama os eleitores de Trump de “deploráveis”. Não seria o caso, como alguém sugeriu,  de mostrar-lhe um espelho? Para ela ver quem merece o título de “deplorável”?

Uma coisa é certa: se alternativas não são construídas e ganham força antes que seja tarde demais (talvez já seja tarde demais), seremos todos “deploráveis”, pois deploráveis são os que vivem sob a tirania de grandes empresas, regidas por políticos como Donald Trump.

 

Daniel Aarão Reis

Professor de História Contemporânea da UFF

Email: aaraoreis.daniel@gmail.com