É essencial que se organizem manifestações para deixar claro que não deixarão que se mate Marielle pelo esquecimento

 Mataram um estudante, e se fosse um filho seu? Com raiva na voz e sangue nos olhos, grupos de estudantes entravam em ônibus, restaurantes, teatros e cinemas, denunciando o assassinato de Edson Luís Lima Souto no Centro do Rio de Janeiro por soldados da Polícia Militar. E se fosse um filho seu?, indagavam, na esperança de suscitar compaixão e solidariedade.

Edson Luis velado

O corpo de Edson Luís sendo velado na Assembleia Legislativa do Rio em 28 de março de 1968

Edson Luís era um dos milhares de jovens, a maioria formada de secundaristas, quase todos pobres, pardos ou negros, provindos de outros estados, que faziam refeições no restaurante do Calabouço, localizado próximo ao Aeroporto Santos Dumont. Construído no quadro da política assistencialista de Getúlio Vargas, oferecia preços subsidiados e um conjunto de serviços a estudantes carentes. Contudo, para atender às necessidades do trânsito de veículos, a ditadura determinara a demolição do restaurante. Houve resistência. Os estudantes quebraram máquinas e escavadeiras enviadas para o trabalho de destruição. Denunciaram a injustiça e a crueldade daquela decisão. Era uma questão de sobrevivência, pois eles não tinham recursos para pagar os preços de restaurantes normais, por mais modestos que fossem.

O movimento ganhou apoio de estudantes universitários e de intelectuais. O governo recuou e fez um acordo: um outro restaurante seria construído, no Centro da cidade, próximo aos locais de trabalho e de estudo. De fato, em tempo recorde, construiu-se um novo prédio, mas sem as mínimas condições de higiene e de espaço para abrigar tanta gente. Um desrespeito. Sequer havia um piso de cimento, obrigando as pessoas a comer em meio a nuvens de poeira. Recomeçaram as passeatas. Esquentavam os ânimos.

Edson Luis presente

Amanhã, o Rio relembrará uma data histórica: há exatos 50 anos, em 28 de março de 1968, os estudantes do Calabouço se preparavam para mais uma manifestação pelo cumprimento do acordo firmado. Previam chegar à Assembleia Legislativa, na Cinelândia, onde hoje funciona a Câmara de Vereadores. A Polícia Militar compareceu com a habitual truculência. No embate, mataram Edson Luís.

Com o cadáver nos braços, os estudantes rumaram para a Assembleia, onde depositaram o corpo. Foi realizada ali mesmo a autópsia, o prédio cercado por uma multidão que acorria de todos os cantos, comovida, solidária, indignada.

No dia seguinte, imensa passeata levou o jovem assassinado ao Cemitério São João Batista. A cidade parou. A polícia recolheu-se aos quartéis. Pela primeira vez desde a instauração da ditadura, em 1964, o povo do Rio tomou as ruas e as praças, e pôde manifestar-se pacificamente. Entretanto, os responsáveis pelo crime nunca foram identificados, ficaram impunes.

Quase 50 anos depois, um novo assassinato político está abalando a cidade e o país. Desta vez, mataram a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Pedro Gomes.

Cinquenta anos separam os assassinatos de Edson Luís Lima Souto e Marielle Franco. O que os distingue, o que os aproxima?

Plenário da Câmara dos Deputados durante sessão não deliberativa solene em homenagem à vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e seu motorista, Anderson Gomes, assassinados no Rio de Janeiro. Segurando girassóis, parlamentares do PSOL, PT, PSB e militantes dos direitos humanos marcharam desde a taquigrafia até o plenário da Câmara, onde acompanharam a sessão solene no plenário. Uma grande faixa preta com os dizeres "Marielle, presente! Anderson, presente! Transformar luto em luta!" foi estendida em frente a mesa de trabalhos. Faixa: "Marielle presente, hoje e sempre". Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Ambos eram pobres, pardos, ocupavam um lugar onde é menor a esperança de vida e mais provável a morte violenta. Edson era muito jovem, quase um menino. Seu futuro, um mistério. As lutas que ele não lutou, Marielle, também ainda jovem, mas mulher feita, as travou com determinação e coragem. Ultrapassou barreiras que raros conseguem pular, e ia alto, linda, em pleno voo, um belo voo de liberdade e de vida, quando a abateram. Um futuro brilhante a aguardava, e isto nos torna tanto mais tristes, amargurados e indignados.

Viveram, porém, conjunturas diferentes. Em 1968, a ditadura parecia balançar. Logo depois, no entanto, endureceu-se ainda mais, através do maldito Ato Institucional nº 5. Em 2018, é a democracia que balança. Já se disse, e com razão, que o tiro que matou Marielle alvejou o regime democrático.

Os estudantes do Rio preparam uma manifestação para amanhã, quando pretendem reverenciar a memória de Edson e Marielle. Acertaram na mosca. Não esquecer é um primeiro passo.

Contudo, uma outra preocupante aproximação que se desenha é a de que os mandantes e os autores diretos do crime permaneçam desconhecidos — e impunes.

Para evitar que isto aconteça, duas medidas são indispensáveis. A primeira delas, ventilada por um manifesto internacional assinado por intelectuais e artistas, é a formação de uma Grande Comissão, da sociedade civil, étnica, social e politicamente plural, para acompanhar e monitorar as investigações agora em curso. O crime cometido é sério demais para ficar apenas nas mãos da polícia e do Exército.

Marielle recortada

Num outro nível, é necessário que a sociedade não se desmobilize. É essencial que se organizem, todas as semanas, manifestações públicas para deixar claro que as gentes estão despertas, vivas e que não deixarão que se mate Marielle pelo esquecimento, como se fez com Edson.

Marielle era filha apenas de seus pais, mas… e se fosse uma filha sua?

Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da UFF

daniel.aaraoreis@gmail.com