De algum jeito, somos todos contadores de histórias. Uns mais exibidos, outros menos. Com palavras, gestos, com o corpo, de diversas maneiras a comunicação se expressa dando sentido a enredos que matizam nossa atividade no mundo. Só os humanos contam casos, e isto é distintivo. A palavra é o início de todas as coisas, e não há religião que não se inicie com o verbo divino encarnado. E o verbo é ação, movimento, história. Acatados em escalas grandiosas ou não, precisamos relatar tramas que nos definem enquanto seres interativos e dependentes uns dos outros. A bailarina precisa dançar, dançar para uma plateia; o político precisa da audiência que se converta em voto; e o que seria do palhaço sem a rizada do distinto público? E para quê alunos sem professores, aliás o que seria da escola então? Que dizer de sacerdotes, pastores oficiantes de missas ou cultos? E quem comeria a pipoca do pipoqueiro, ou escutaria a serenata dos apaixonados? Quem? Até em redes sociais temos que contar… Para o bem ou para o mal, somos todos contadores.

Risos, vozes altas, murmúrios, silêncios, tudo enfim clama narrativas e provoca efeitos transformadores: gozos, lágrimas, rejeições, raivas plurais. Até os silêncios falam, contam, dizem, dialogam. Propondo soluções de entendimento, a simples presença de corpos, de todo jeito e maneira, irradia significados desnaturalizadores de mesmismos.

Somos, enquanto seres vivos, fabricadores de semas indicativos de um compósito constelar que merece relevo teatral: gestos, cenários, entonação.  Viver é contar, é estar contando em gerúndio bonito, e é ser contado em diálogos de inclusão ou do reverso disso. E tanto somos contadores que nós mesmos viramos personagens de enredos e seguimos em frente compondo partes que se completam em novelas sequentes e que nos transcendem. Todos, sem exceção nos pronunciamos ou somos motivos. Uns contam se protagonizando narradores, outros, como audiência também se situam na mesma trança que envolve terceiros, quartos, quintos, até que vira de todo mundo. A vida é uma longa história de duvidoso começo e sem fim previsível… Entre nascer e morrer, o que temos senão nossa história?

Arte de contar historia 1

Existem os mais reservados, pessoas que se dizem em pequenos círculos, na intimidade da troca miúda. Não são exíguos os que aos ventos dimensionam entoadas verbais. E os códigos podem variar: pela grafia alguns escrevem. Escrevem uns para si, outros para a posteridade. Há os narradores reputados que mantém um jogo de vínculos que relaciona emissor, receptou e sistema social e assim ganham mercado, se profissionalizam. O mundo da imagem promove outro circuito narrativo, código especial de história. E haja cartas, artigos, crônicas, livros e livros. Mas, não param, os temas se desdobram em páginas continuadas, voam, se musicam, embalam, acalmam, reclamam e viram solfejo. Ah! os registros imagéticos, pictóricos, táteis. Quantas histórias são sugeridas em fotos, quadros, esculturas, em todas as tentativas de marcar momentos e conter teias pretéritas sempre em busca de eternidades.

Tal é a força da contação que se diz que quem pouco conta se vai deixando de existir, morre triste e não sobrevive em remessas de amigos. Há aquelas freiras que se retiram em supostos silêncios, mas quietas tratam de uma outra transação. Mortos sem rastros são defuntos esquecidos. Haja legenda. Lembranças e in memoriam. Leve-se em conta que tem gente que se alça pelas histórias de botequins, alguns se protagonizam em esquinas, em rodas de famílias ou de amigos. Há os engraçados, pândegos mais espalhafatosos e aqueles que se afamam em piadas convenientes ou não; existem os trágicos, chorosos; moralistas; maldosos não faltam…

Nobel Peace Laureate Elie Wiesel is seen before participating in a roundtable discussion on "The Meaning of Never Again: Guarding Against a Nuclear Iran" on Capitol Hill in Washington March 2, 2015. REUTERS/Gary Cameron/File Photo

Elie Wiesel, prêmio Nobel em 1986

O fofoqueiro é um contador incontido. Cada qual tem seu estilo e preferências expressas em performances variadas, mais ou menos constantes. E há segredos lúdicos em tudo; e até detêm histórias as bulas de remédios, as bengalas dos velhos, a raiz quadrada. E como é bom pensar nas receitas de família, nos pratos típicos de lugares sempre utópicos. Tudo, tudo pode ser motivo de fabulações contextualizadas ou implícitas. Os casos vão além das palavras ditas ou escritas, ganham dimensão de cura, gosto, cheiro.

Três elementos que se complementam e em pares se harmonizam para o sucesso dessas apresentações que nos distinguem de todos seres viventes: a novidade/revelação; a intriga/motivo e a surpresa/desfecho. Os efeitos sensíveis também atuam neste circuito. Tais são as características essenciais dos causos. E todos os enredos guardam algum ardil revelado na trama. Seja de uma ou outra forma, nenhuma é inocente. Sabe, fico me perguntando: o que seria da vida sem as histórias que aprendi? E finalmente sou salvo por Elie Wiesel, prêmio Nobel em 1986, que dizia Deus criou a humanidade porque gosta de histórias. E eu gosto de Deus.