Quando o carteiro me entregou o envelope, jamais eu poderia imaginar que seu conteúdo fosse capaz de provocar o feitiço que, vez por outra, me domina, uma alucinação auditiva que percorre meus sentidos, esfrangalhando-os; uma fantasia delirante que me arrepia e acelera. Tudo resumido em quatro palavras: Pós você e eu (selo Circus), álbum que junta Lívia Nestrovski (voz) e Arthur Nestrovski (violão).

A voz de Lívia soa como se mantivesse uma suposta distância de sua garganta e adquirisse vida própria. Sua voz vibra como como se fora um episódio sobrenatural, impossível de ser traduzido, nem sequer explicado. Já o violão de Arthur repercute como um acalanto imaginário. Seus dedos vão às cordas como quem trança laços de atar e abrigar. A sonoridade resultante de seu virtuosismo ecoa como palavras que servem como escudo que haverá de proteger e alertar para as misérias da vida. Com seu instrumento, Arthur não só acompanha, se faz presente.

Lívia e Arthur têm muito mais em comum do que a música, arte à qual se entregam com aptidão e perfeição: são pai e filha, filha e pai. Seus laços são mais do que sanguíneos, são outorgados pela música registrada no pentagrama da existência. Música que lhes serve não apenas como meio de se comunicar com o mundo, mas também como forma de se expor um ao outro.

 

 

“Pós Você e Eu”, de Arthur Nestrovski e Luiz Tatit, de cujos versos vem o título do disco, abre o trabalho e tem voz e violão numa grande interpretação. Lívia impregna os versos da mais plena doçura e Arthur lhe entrega seu violão, apoiando-a, permitindo-lhe que expresse a sua musicalidade por inteiro: única, com vibrato e respiração postos na hora certa, afinada… uma intérprete majestosa!

“Serenata” (versão de Arthur para “Ständchen”, de Franz Schubert e Ludwig Rellstab) tem sabor de canção brasileira. A delicadeza volta a imperar. Os agudos vêm fáceis, certeiros. O violão acompanha e, num intermezzo fascinante, se faz ainda mais parceiro da voz.

“Londrina” (Arrigo Barnabé). Os parceiros se complementam. O violão e a voz geram andamentos suaves, contrastando com a inventividade harmônica e melódica da música, numa nova maneira de abordá-la.

 

 

Já as clássicas “Folha Morta” (Ari Barroso) e “Molambo” (Jaime Florence e Augusto Mesquita) ganharam versão mais para fora, com a voz demostrando potência, o que destoa um pouco das interpretações presentes nas outras nove faixas.

“Pra Que Chorar” (versão de Arthur para “Ich Grolle Nicht”, de Robert Schumann e Heinrich Heine) tem Lívia murmurando sons aleatórios (quase vocalises) que a sensibilidade de Cacá Machado (produtor musical) houve por bem deixar registrados.

São carinhos e afetos trocados, tocados e cantados. São voz e mãos juntadas em extraordinária amorosidade, tudo despontando fervoroso, numa formidável interação musical, através da qual Lívia e Arthur se despem de qualquer presunção ou egocentrismo. Meu Deus!

 

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4