Em 1968, nas fábricas e oficinas, nas ruas, nos cafés, uma sociedade descobria-se ativa, esperançosa, participativa que foi esmagada por tanques e tropas soviéticas em 20 de agosto do mesmo ano

“Era como se o mundo tivesse se aberto para nós, uma época em que as pessoas podiam realmente respirar e tinham a sensação de que algo bom e alegre estava acontecendo.” Estas singelas palavras foram ditas há 50 anos, em 1968, por Marta Kubisova, uma das mais importantes cantoras tchecas, que assim resumiu suas impressões sobre a atmosfera de liberdade e de otimismo que passara então a existir em seu país, a Tchecoslováquia: era a Primavera de Praga.

Marta Kubisova

Marta Kubisova, uma das cantoras mais populares da Checoslováquia na época da Primavera de Praga

Resultado da reunião de dois povos eslavos — os tchecos e os eslovacos —, a nova nação, criada em 1918, dispunha, porém, de densas tradições. Naquelas terras forjaram-se propostas de liberdade, renovadas nas lutas contra o império austríaco e vivas na construção de uma república democrática.

A resistência à ocupação nazista confirmou as aspirações à liberdade e à democracia. Depois da Segunda Guerra Mundial, foi necessário um golpe de Estado, em 1948, e expurgos no Partido Comunista local, em 1952, para que o país fosse enquadrado na órbita soviética.

Contudo, permaneceram ali, subterrâneas, tendências críticas, rebeldes, insubmissas. Elas brotariam em 1967, em manifestações estudantis, duramente reprimidas, e na realização de um congresso de escritores, quando se criticaram a censura e a ditadura política.

Povo e tanques

Nas ruas a multidão criticava a censura e a ditadura política

Abriu-se então a discussão entre os próprios governantes. De um lado, os conservadores, favoráveis à ditadura; de outro, os reformistas, sensíveis às reivindicações democráticas. Depois de ásperos debates, venceram os reformistas, renovando a direção do partido e do governo.

Segundo o novo líder, Alexander Dubcek, era necessário pensar um caminho próprio, de “rosto humano”, para o socialismo tchecoslovaco.

O filme, agora, começaria a correr mais rápido. Em abril, foi aprovado um novo programa para o partido, aberto às reformas econômicas e às liberdades. O governo, conduzido por O. Cernik, empreendia mudanças e acenava com experiências de descentralização da economia e autogestão das empresas. Em junho, a Assembleia Nacional, sob a presidência de Josef Smrkovsky, notável orador, aprovou leis, abolindo a censura e autorizando a revisão das pesadas perseguições cometidas no passado. Nesse mesmo mês, sob a liderança e a inspiração do escritor Ludvík Vaculik, publicou-se um texto capital: “Duas mil palavras que pertencem aos operários, camponeses, funcionários do Estado, cientistas, artistas e a todo o mundo”, o chamado Manifesto das Duas Mil Palavras. Nele se exprimia, embora de forma moderada, uma crítica contundente ao socialismo tchecoslovaco: “Ninguém mais tem alegria no trabalho, e as pessoas só pensam em dinheiro e em si mesmas. A saúde espiritual e o caráter deste povo estão em ruínas.”

Dubcek

Dubcek, o novo líder, pregava um socialismo com rosto humano

Brisas frescas e fortes ventavam agora em Praga, Bratislava, Brno, Plzen. Nas universidades e nas escolas, nas fábricas e oficinas, nas ruas, nos cafés, uma sociedade descobria-se ativa, esperançosa, participativa, otimista.

Foi demais para o governo soviético. Desde o início, a URSS multiplicava advertências e pressões. Temendo contaminações, mobilizando o que havia de mais reacionário entre seus aliados, sob o argumento — falaz — de que o socialismo estava em perigo — na verdade, o que estava em questão era o modelo soviético de socialismo —, o governo de Moscou, na calada da noite de 20 para 21 de agosto de 1968, decretou uma invasão em larga escala da Tchecoslováquia.

Mais de sete mil blindados, cerca de 500 mil soldados, centenas de aviões com tropas paraquedistas foram lançados contra um pequeno e indefeso país.

As principais lideranças, assim como o congresso do Partido Comunista, reunido às pressas na clandestinidade, condenaram a invasão. Indignadas, as gentes foram às ruas. Trocavam as placas e os sinais de trânsito para confundir os invasores. E cercavam os carros blindados, cuspindo nos tanques, insultando e amaldiçoando os soldados. Uma resistência corajosa, mas patética. Morria ali uma experiência inovadora de socialismo democrático. Uma chance histórica perdida.

*Professor de História Contemporânea da UFF

e-mail: daniel.aaraoreis@gmail.com