Por Padre Fred
O BALÉ DO BRASIL

Durante a II Guerra, a igreja de Saint Anne’s sobreviveu aos bombardeios alemães sobre a City e o Esat-end. Em maio de 2004, assumimos a igreja em ruínas. Em 2005, já transformada em ponto de encontro de brasileiros católicos para assistir a missa aos domingos, comemorou seu jubileu de 150 anos de construção com a presença do Duque de Kent que não conseguiu assistir um espetáculo de capoeira, o balé do Brasil.

 

As reconstruções feitas no East-end, em Londres, após a II Guerra foram dadas aos refugiados muçulmanos da Índia, Paquistão e Bangladesh que acabavam por povoar aquela área. Desde então, nossa igreja, que sobreviveu aos bombardeios da Segunda Guerra quase ruiu por ausência total de fiéis. Os cristãos que moravam naquela área foram todos embora - expulsos pelos bombardeios ou pelos novos moradores que chegaram com suas línguas estranhas, as burcas e os turbantes, as mesquitas e suas lojas e restaurantes com culinária temperada com curry. A igreja, por conseqüência, não tinha mais fiéis. Sem fiéis, não tinha renda. Sem renda, não tinha como se manter, como sobreviver. Estava literalmente: caindo.


Foi-me oferecida esta igreja pra eu me reunir com os brasileiros. Os brasileiros chegaram e, em mutirão, reconstruíram e pintaram o templo em estilo gótico-vitoriano que está lá, lindo, cheio de brasileiros nos fins de semana, vindos de toda Londres pra se reunir com Deus. Aos poucos, os poucos "locais" de língua inglesa começaram a voltar – afinal, agora, a igreja já tinha um padre que falava a lingua deles - e todos os domingos havia uma missa em inglês para eles. Quase todos bem velhinhos e saudosistas, mas felizes ao verem a linda igreja renascer, como a Fênix, se não das cinzas, do abandono.


Eu, como capelão brasileiro e pároco dos ingleses "em residência", tomei a coragem de escrever uma carta à Rainha Elizabeth II convidando-a a vir celebrar conosco os cento e cinqüenta anos da paróquia. Ela respondeu com uma linda carta agradecendo o convite e pedindo desculpas por ter sua agenda já toda tomada. Mas, me perguntava se eu gostaria de receber a visita de seu primo - como seu representante pessoal - para as festividades. Adorei a idéia e aceitei a oferta.


Começaram a vir os agentes da Scotland Yard para programar a visita do Duque de Kent e prever todos os items com relação à segurança. O Duque de Kent é, de fato, primo-irmão da rainha. Ele é filho do falecido Duque de Kent, irmão do pai da rainha, o falecido Rei George VI.


O Duque de Kent de hoje já é sessentão e muito simpático. Quem gosta de assistir aos jogos de tênis em Wimbledom sabe quem ele é. Ele é o patrono de Wimbledom e é ele quem entrega os prêmios aos campeões de tênis. Ele e sua loira esposa, Katherine Worsley, a Duquesa de Kent – que, inclusive, recentemente converteu-se à fé católica juntamente com dois de seus filhos, e perderam o direito, por isso, à sucessão ao trono britânico.


O Duque continua anglicano e é o grão-mestre da Maçonaria Inglesa. Depois de todos os arranjos para a visita acontecer, ele veio no dia 6 de outubro de 2005, na parte da manhã, visitar a igreja e a casa, a escola paroquial e, depois, almoçar com a comunidade no nosso hall paroquial. Faço menção aqui que, por uma feliz coincidência estava visitando a nossa paróquia, em Londres, o casal de Taubaté, Mauricio e Júlia Carneiro Bastos, proprietários e diretores do Colégio Jardim das Nações, que almoçaram e tiraram muitas fotografias ao lado de Sua Alteza Real.


Após a refeição, houve as trocas de presentes, os discursos de praxe e a apresentação de um balé irlandês, cujo grupo ensaia todas as terças feiras em nosso hall. Estávamos preparados para apresentar uma das manifestações das mais folclóricas de nosso país, a Capoeira... Porém, o espetáculo não aconteceu. O duque primo da rainha não viu a capoeira brasileira. A desculpa que eu dei, para a não apresentação, foi que, como a visita fora numa quinta feira cedo, os brasileiros estavam trabalhando. Mas a razão foi bem outra.


Os policiais ingleses criaram dificuldade com medo de que os dançarinos brasileiros aproveitassem o momento para fazer alguma manifestação de protesto contra a morte - a tiros - do jovem brasileiro Jean Charles de Menezes, pela Polícia Metropolitana.


A capoeira é uma luta dos escravos que virou quase que um balé. Um balé de beleza plástica, eu diria, de movimentos quase que cirúrgicos devido à precisão de seus passos e gestos. Mas, a capoeira não pôde ser vista, dançada ou lutada porque fatores políticos mais fortes abafaram a arte e a beleza. Jamais aqueles moços e moças da capoeira iriam misturar suas intenções e seus ideais. Estávamos, sim, todos muito chocados e tristes com a morte inocente de um dos nossos.


Porém, a arte da dança supera a morte - morte de tantos escravos negros que trouxeram sua tradição e cultura da África para o Brasil – e imortaliza a alma dos que a dançam, jogam ou lutam. O duque não viu... o duque perdeu. Perdeu a Arte naquele momento. Venceu a política cínica de um governo que faz a guerra no Iraque e Afeganistão... e mata um jovem inocente indo para o seu trabalho.


Lembrei-me de contar este fato nestes tempos de eleição quando somos chamados a escolher nossos governantes. Não deixemos que ela supere a arte da boa escolha, a escolha do melhor. Não deixemos que a Arte de governar morra por causa da escravidão do desgoverno da corrupção e da fraude que avançam na contra-mão da história e não deixam o país dançar a sua cultura, a sua riqueza, a sua fé, no balé do desenvolvimento justo, da ordem e da paz. Esta sim, é a dança da beleza de um povo rico, de um povo bom.




 

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