Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy

CARTA ABERTA A UM AMIGO QUE PARTIUCARTA ABERTA A UM AMIGO QUE PARTIU


Mestre JC Sebe escreve para um amigo, que dispensa apresentação, uma carta que pode ser lida com a tristeza provocada pela perda de um ente querido ou com a alegria da certeza de um breve e eterno reencontro

Meu caro amigo,

Estou mal com você, muito mal. Como foi embora assim, sem se despedir, sem sinal de adeus, sequer sem deixar um sorriso? E por quê? Sua saída brusca não deixou espaço para pôr ordem nas lembranças, nem organizei flashes de nossa história, e agora que soube de seu afastamento, de maneira tão prosaica, que posso eu dizer?


Sabe, fiquei aturdido com a informação. Amiga querida nossa, sem coragem, foi arrastando a notícia, foi esperando o melhor momento e de tão suave a mensagem vazada em um e-mail ralo que não acreditei de imediato. Lembra da canção: “você foi saindo de mim...” sei que é sobre um amor abandonado que nada tem a ver conosco, mas serve para expressar o que senti frente ao que ainda não estava claro: sua morte. Era sábado, me arrastei até o telefone, chamei a colega nossa, mas a inefável falta de resposta só fez aumentar meu desespero. Eu devia estar enganado, não era possível! Não podia ser, você mais jovem do que eu, mais solto, mais alegre, mais tudo. E de repente, assim sem mais, sair da vida.


Enquanto não vinha a confirmação, procurei juntar frações de nossas histórias comuns e comecei pelo fim. Esta mesma amiga e eu o procurávamos. Elo de histórias comuns, víamos em você um tesouro que sabia segredos que nos fugiam. Trocamos informações recentes e depositamos no horizonte possíveis encontros. Haveria de ser emocionante nos rever. Confesso que ouvia barulho de uma festa sendo preparada para nossa reunião. “Reunião”, palavra doida quando os sonhos são frustrados.


A tal amiga tinha um repertório de saudade de você onde morava uma infância fanfarenta, férias na fazenda, brincadeiras de esconde-esconde. As minhas frações de lances eram mais urbanas, mais de adolescente. Lembro-me quando decidi sair de casa e que seus pais abriram para mim um quarto para morar e de duas conversas: uma com você e outra com o Roberto Dias que também foi embora – será que para preparar a sua chegada? Na verdade eu era mais amigo de seu irmão e de sua irmã – que também saiu correndo para o mesmo céu que deve se alegrar agora. Mas a conversa que tivemos então foi de uma lucidez que ninguém acreditava que você tinha.


Em suas palavras mansas, dizia que a casa de seus pais era minha também, mas que meu lugar era de volta à minha família. Choramos juntos, então. Mas essas lágrimas conviveram com o mar de nossos risos que se multiplicaram como os anos comuns.


Lembro-me de como você era vagabundo na escola e como sempre tinha uma desculpa para não estudar. Eram sempre os “maus professores” e as constantes “injustiças” que faziam você matar aulas, ficar doente em dias de prova. E sua alegria nos dias de faltas de professores! Mas todos o amavam muito e os perdões eram multiplicados frente a suas geométricas promessas de regeneração. Você era engraçado, tinha tiradas pândegas e inventava as desculpas mais descabidas possíveis. E foi fumante precoce. Lembro-me que dentre todos você foi o primeiro a desafiar a autoridade de quantos diziam ser errado o “vício”. E como fumava bem, soltava círculos de fumaça e me enchia de inveja.


As informações que confirmaram seu afastamento foram parcas. Parece que saiu para uma pescaria, que foi para a beira de um rio e, cansado, sei lá, preferiu a sombra de uma árvore e quando viram você tinha aprontado mais uma de suas surpresas. Pode ter sido diferente, mas, sinceramente, prefiro pensar que foi assim: você indo pescar, fazer o que tanto gostava, escolheu o lugar perto do verde e dos bichos que tanto amava, nem se despediu da família, ou melhor, deve ter dado um adeusinho... e na paz de sua escolha nos deixou todos.


Ah, como vou sentir sua falta! Estranho, né, muito estranho supor que enquanto armava nosso encontro você me deixa falando sozinho. De toda forma, meu querido, onde estiver, saiba que esta mensagem é um aviso para que me espere. Temos muito o que acertar e a eternidade será pouco para nós. Vamos rir muito, mas agora deixe-me chorar um pouquinho.


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