Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Escrito antes de 1º de maio, Sebe antecipou o sucesso da monumental manifestação pacífica realizada em 60 cidades por latinos que formam a maior minoria étnica dos EUA, com mais de 36 milhões de pessoas e que já representam cerca de 10 % do eleitorado e têm peso decisivo na definição dos resultados eleitorais em vários Estados. Objetivo? Legalização dos 12 milhões de imigrantes ilegais.

Em 1986, sob a presidência do ultraconservador Ronald Reagan, republicano histórico, deu-se a anistia aos estrangeiros que estavam ilegalmente estabelecidos nos Estados Unidos. Naquele contexto, o mandatário tinha a maioria no Congresso Nacional e ainda não haviam sido iniciados os ataques terroristas que culminaram no fatídico 11 de setembro de 2001.
Vinte anos depois, o número de “não documentados” cresceu de dois milhões e meio (sendo então um milhão de latinos) para doze milhões (agora com cerca de 8 milhões de latino-americanos) e o presidente, também republicano, não tem mais a maioria dos votos nas instâncias decisórias.
O grande fato diferenciador, contudo, reside na atitude dos imigrantes e no impacto destes junto à opinião pública. Planejado para este 1o de maio, dia regular nos Estados Unidos que celebra a data comemorativa ao Trabalho em setembro, em várias cidades planejam-se demonstrações ostensivas que dimensionariam a força da mão de obra ilegal naquele país. Para tanto, uma das estratégias a serem usadas seria a ausência dos estrangeiros clandestinos aos trabalhos. Imagina-se a gravidade de setores como a agricultura onde mais de 80% depende de mexicanos, e serviços domésticos em geral ocupados por 78% de latinos. Isto sem falar de atendimento a restaurantes, limpeza pública, trabalho em construção civil, transportes e hospitais.
O mote da manifestação Um dia sem imigrante é inspirado no roteiro de um documentário fictício de Sergo Arau, diretor de cinema que produziu em 2004 o bem humorado longa “Um dia sem mexicanos”. A história mostrada no filme revela o caos em que se transformou o pacato e confortável american way of life sem os mexicanos no estado da Califórnia. Agora, dimensionado na realidade de todo o país, a vida imita a arte como ameaça a todos os norte-americanos. A planejada paralisação de 24 horas visa boicotar o funcionamento do território nacional como um todo e sensibilizar os políticos para nova anistia. Intelectuais, figuras expressivas das ciências e artes e simpatizantes são esperados para engrossar a manifestação que alcança dimensões jamais esperadas. A organização da campanha pretende que Washington DC., como capital, tenha a maior repercussão e isto faz com que as atenções do mundo sejam atraídas para aquela cidade.
Sob todos os pontos de vista, a manifestação é um sucesso. Há, porém agravantes que começam a preocupar os organizadores, pois a recepção tem sido tão bem aceita que se torna perigosa aos olhos de segmentos tradicionais da sociedade norte-americana. Não são poucos aqueles que começam a sentir que a liberação de vistos ou a permissão de trabalho deva causar temores de nova invasão. A consciência disto tem feito pessoas como Ricardo Juarez, líder de uma das alas mais prestigiadas da campanha “mexicanos sem fronteiras”, tenha alertado contra o risco de um tão monumental possa substituir os acordos estabelecidos pelo diálogo e negociação de gabinetes.
Grupos que se posicionam contra a anistia se valem de argumentos que evidenciam a atenção a este problema como forma de desviar o debate sobre o Iraque e o Oriente Médio ou o esforço do governo Bush em angariar a simpatia dos latinos para os votos republicanos nas próximas eleições presidenciais. Mesmo entre os “indocumentados” há facções que contestam a campanha que, afinal, beneficiaria aqueles ilegais que estão há mais de cinco anos no país, mas criaria dificuldades insondáveis para os que têm menos tempo e principalmente para os futuros imigrantes que teriam que redobrar esforços para o ingresso lá.
De toda forma, fica evidente que a vitalidade deste movimento implica uma vingança. A ilegalidade se impôs de tal maneira que a passagem de um comportamento “criminoso” faz com que sejam contestados alguns valores tidos como essenciais na cultura estadunidense. Mais do que a “tolerância”, ou a propalada “oportunidade para todos”, o quase levante dos imigrantes ilegais atesta a vulnerabilidade de uma sociedade que se diz aberta e pluralista, mas que, em essência tem que reconhecer ciclicamente que não sobrevive sem o “inimigo” externa ou internamente.

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