Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Sebe faz um “inventário” de sua mania de colecionar desde sapos, passando por ovos até garrafas coloridas. Cada peça carrega uma história e um pedaço do mundo.

Dia destes pensava nos impactos modernizadores de nosso tempo e na relação fatal com os comportamentos sociais. Pois é, foi quando me dei conta da administração do tempo pessoal. Ninguém tem mais espaço para o convívio. Até mesmo instantes de lazer individual ficam comprometidos com a pressa. A urgência do viver contemporâneo tem imposto limites drásticos na vida de todos.
Foi constatando este fenômeno que passei em revista o meu passado comigo mesmo. Antes, devo dizer que sempre fui dado a uma aprazível convivência com a solitude (não confundir com solidão mórbida). Sim, gosto muito de ficar sozinho e me entreter com leituras, projetos de livros, escrita de um diário que se alonga desde os meus tenros anos. E também de quando em vez começo uma ou outra coleção de objetos. Acho que sou um colecionador em potencial e como gosto de juntar coisas, ao longo dos anos tenho acumulado séries de objetos que, contudo, não chegam a obstinação de certos colecionadores mais sérios.
Menino criado em colégio interno, em Lorena, no celebrado São Joaquim – onde estudaram Jânio Quadros, Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, entre outros – tornei-me “filatelista”. E com que carinho dedicava-me a caçar selos do mundo todo? Embora limitado pelos muros dos salesianos – e talvez por isto mesmo – buscava somar séries de quantos países podia imaginar. Minhas economias eram parcas, mas mesmo assim, em viagens a São Paulo, gastava o tempo disponível em casas da Rua São Bento onde, então, sonhava com os trajetos de cartas. Vendo de agora, acredito, estava nessa coleção o desenho de minha vida de itinerante inveterado. Pai, escolhi um de meus filhos, Davi, para doar o modestíssimo acervo que, contudo, conta de um tempo precioso para mim.
É verdade que algumas coleções temáticas são estranhas. Eu mesmo não saberia dizer, por exemplo, porque mais tarde comecei outra “mania”: guardar imagens de sapos. Esta, diga-se, é até hoje a mais presente de minhas coleções. Tenho certeza de que os sapos me impressionavam desde os contos infantis. E não é preciso grande esforço para constatar a presença desses anfíbios nas historinhas de Anderesen ou dos irmãos Grimm. Entre nós, de Lobato ao folclore e às cantigas de crianças (sapo-cururu, na beira do rio, quando o sapo canta maninha é que vai chover...) os sapos são humanizados e assumidos como símbolos de transformação.
Quem não se lembra do sapo beijado pela donzela que no ato o faz príncipe? E do coitado jogado na parede e renascido moço bonito. Haverá alguém que não se impressione com a transformação dos minúsculos girinos em rãs? E há algo mais bucólico do que o coaxar de sapos à noite? Pois bem, saibam todos que, onde vou, sempre procuro comprar um sapo e esta coleção quero deixar para meu neto Gabriel, filho de Felipe.
Convencer os outros da validade de colecionar ovos pintados é mais fácil. Símbolo da vida, o ovo merece respeito natural. Comecei a guardá-los em uma remota temporada de Páscoa e tenho até uma apreciável série. É para minha neta Manuela que vou, um dia, doar a estante de ovos comprados onde vou. E os tenho de muitas plagas: russos, poloneses, ucranianos, franceses. De tal forma a “coleção” cresceu que tive que optar entre os naturais e os feitos de gesso, porcelana, barro. Sempre alguém me presenteia com ovos de pedra e estes eu guardo em separado, pois aprendi que dão sorte.
Garrafas coloridas e de formatos incomuns fazem parte de outra mania. Comecei a guardá-las porque não tinha coragem de jogar fora esses fracos coloridos, invulgares e sugestivos. Creio ter mais de trinta garrafas que afinal são justificadas como objetos de decoração. É para meu filho Pedro que vou deixar esta série que promete crescer.
Confesso estranhar a proposta desta crônica. De um lado, parece um inventário, mas no avesso disto está a meditação sobre o tempo, o convívio comigo mesmo, e o prazer que, mais que mania, é um atestado de respeito aos compromissos inexplicáveis como o sonho de guardar lembranças.


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