Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Haveria contradição entre as visões de Caetano Veloso e Cazuza sobre Nova York?.

Para as pessoas atentas à MPB há algo que sempre surpreende: o efeito cumulativo e as idéias desdobradas, promovidas pela seqüência de temas. Juntas e seriadas, elas formulam diálogos abertos àqueles que vêem na música uma forma de estudar a História do Brasil. Há exemplos memoráveis. Seja nas imagens das mulheres, na modernização de aparelhos como telefone, nas transformações dos vícios – do cigarro à maconha, por exemplo – ou na crítica social.
Talvez, um dos mais impressionantes destes nossos diálogos musicais seja a percepção cruzada entre autores que discutem o significado sofisticadíssimo do registro de Nova York no cancioneiro popular nacional. Em artigo publicado na Revista Nossa História, número 25, de novembro de 2005, explorei o tema ao qual volto agora procurando enfatizar a conversa proposta por Caetano Veloso e Cazuza. Em causa entre os dois, a percepção daquela cidade que encantou, por motivos diferentes, a ambos. A começar por Caetano que sempre arrolou cidades como motivo de músicas (“London, London”; “Sampa”; “Nome da Cidade”; “Meu Rio” entre muitas outras), nota-se que continuou uma tradição inaugurada por Lulu Santos em 1982 e continuada por Chrystian e Ralf que coloca a presença de Nova York como uma daquelas “cidades imaginadas” de que fala Ítalo Calvino. Aliás, é fácil notar que Nova York funciona como uma referência utópica e assim se constitui numa espécie de capital do Brasil imigrante. Depois dessas canções, a “tradição” continuou com Chico Buarque (“Iracema da América”), manifestou-se em samba na Marquês de Sapucaí (“Uma Rua Chamada Brasil”) e deu até um forró delicioso de nome “Um matuto em Nova York”. Mas vejamos o diálogo indicado.
Em 1989, Caetano Veloso, de maneira poética, assumia a Ilha de Manhattan como Nova York e em combinação melodiosa entre um samba exaltação cantado de maneira arrastada expressa de maneira extremamente elaborada a junção de ritmos que misturam também palavras em tupi (cunha que significa mulher) com o nome da Ilha, Manhattan. E os versos são perfeitos, eruditos. Assumindo como ponto de referência a Estátua da Liberdade, toma-a como versão de uma “doce cunhã”.
Supondo a forma da ilha como uma barca imensa, tendo “na proa, levantada uma tocha na mão” não há como escapar do tributo laudatório que, aliás, compõe a inescapável visão de modernidade que organiza o discurso desse Caetano. Como centro catalisador, Manhattan seria um fatal “remoinho de dinheiro” e passando de um ícone a outro a equipara a “um leve Leviatã”. Portanto, a Estátua da Liberdade, qual uma cunhã fazendo rima perfeita ao Leviatã “leve”, reuniria o sentido da ida em busca daquele espaço confuso onde “dançam guerras no meio da paz das moradas de amor”. Sem se referir especificamente aos brasileiros, a noção de visita supera a de imigração e isso faz desse discurso um acontecimento até certo ponto dúbio, mas que se resolve na integração de sua letra com o momento em que vem ao público.
No mesmo ano, a melodia de Cazuza e Leoni percebe Nova York como um espaço alternativo. Mostrando o sucesso de um brasileiro malandro moderno, declara que logo que chegou conseguiu “carro e apartamento” e assim evidencia um dos pressupostos estereotipadados do “brasileiro mandingueiro” que dá sorte porque sabe contornar as dificuldades. Usando a propalada desculpa do “dinheiro” e do capitalismo, explica seu sucesso pela negociação de identidade: “virei chicano, índio americano” e ostenta a aventura que garante que “os States são meus”. Exibindo a possibilidade de convívio na clandestinidade revela que “só tenho visto de turista, mas sou tratado como artista”. Mas, sintomaticamente, não deixa de se referir, também, à saudade que é compensada com “um feijão com pimenta e um Hollywood no chinês lá na Rua 46”.
Frente a estes dois textos, a pergunta que se faz é: haveria contradição? E a resposta é negativa, pois o que se nota além da simples análise dos textos isolados é a existência de uma complementaridade que se explica na estratégia da multiplicação de possibilidades que os brasileiros procuram em Nova York.

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