Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Mestre José Carlos Sebe nos conta como a música dimensionou a grande figura de JK em um período em que os militares não admitiam qualquer manifestação democrática, por mais pacífica que fosse.

A construção de mitos sempre me fascinou. Como deuses que geram imagens, autores, principalmente da área da história e da comunicação, trabalham perfis de personagens que, afinal, dialogam com as carências públicas de maneira a criar catarses coletivas. Mártires, santos, heróis variados, masculinos ou femininos, enchem o imaginário popular e propõem identidades, respeito, exemplos. E a história convencional arrola uma galeria exemplar de tipos que são evocados como modelos.
O Brasil é um espaço complicado neste sentido, pois a nossa cultura nunca foi reverente a ponto de consagrar heróis sem contestação. Getú-lio Vargas, por exemplo, tanto figura como “pai dos pobres” como ditador despótico; Tiradentes situa-se entre um líder modelar ou um bode expiatório; dom Pedro I tanto é o bravo artífice da Independência como um fujão que deixou o trono brasileiro pelo português. E quanta falta nos faz um santo nacional?... nem beatos temos... isto, aliás, é uma verdadeira tragédia, pois o maior país católico do mundo não tem santo algum.
Enquanto a história oficial trabalha na fabricação de um panteão, a distância do saber culto, o povo propõe outros legendários perfis que, como Lampião e Maria Bonita e Padre Cícero, enchem de emoção a memória de quantos não aprendem a história dos livros e vivem a utopia das lendas.
No momento, porém, um fenômeno novo ronda a tendência conservadora: a figura de Juscelino Kubtischek de Oliveira. Talvez o tumultuado governo de JK tenha deixado mais rastros do que os historiadores notaram. Também conhecido por Nonô, o mineiro de Diamantina, independentemente de sua origem modesta e da dimensão política alcançada, caiu nas graças da classe média que ele criou com a industrialização acelerada em seu governo. Afinal, 50 anos em cinco – como era seu slogan – permitiram a modernização definitiva do país.
Queridinho dos intelectuais, também famoso por ser “pé-de-valsa”, o simpático mandatário mereceu o respeito dos jovens que faziam o mais importante movimento musical dos anos que, por causa dele, foram chamados de “dourados”. Sim, JK foi também o “Presidente bossa-nova”. Mas a típica picardia brasileira o mordeu e quem não se lembra de Juca Chaves cantando o sucesso “Bossa nova mesmo é ser presidente, desta terra descoberta por Cabral. Para tanto, basta ser tão simplesmente simpático, risonho, original. Depois desfrutar da maravilha de ser o presidente do Brasil, voar da Velhacap pra Brasília, ver o Alvorada e voar de volta ao Rio. Voar, voar, voar, voar, voar pra bem distante, até Versalhes onde duas mineirinhas valsinhas dançam como debutante interessante! Mandar parente a jato pro dentista, almoçar com tenista campeão, também poder ser um bom artista exclusivista tomando com Dilermando umas aulinhas de violão. Isto é viver como se aprova, é ser um presidente bossa nova. Bossa nova, muito nova, nova mesmo, ultra-nova!”.
A divertida picardia do Menestrel Maldito foi ainda mais longe, pois logo no primeiro ano de mandato, sob forte oposição de setores das Forças Armadas, Juscelino autorizou a compra do porta-aviões inglês Vengeance, que no Brasil foi rebatizado Minas Gerais. O custo de 82 milhões de cruzeiros causou espécie e, atento Juca Chaves agitou o caso com uma marchinha deliciosa: “Brasil já vai à guerra, comprou porta-aviões/Um viva pra Inglaterra/de 82 milhões – ah, mas que ladrões!”.
Mas, ironicamente, foi no território da música que se dimensionou a figura de JK. Morto em pavoroso desastre no quilômetro 165 da Via Dutra, aos 22 de agosto de 1976, foi enterrado no dia seguinte, em Brasília, com a presença de cerca de 350 mil pessoas. Era a primeira grande manifestação de massa desde a imposição do golpe militar de 1964 que, entre outros, havia cassado o grande Juscelino. Proibidos de bradar contra a ditadura, o povo recuperou a mineiríssima canção e entoou “como pode o peixe vivo viver fora d’água fria/Como poderei viver/como poderei viver sem a tua, sem a tua/sem a tua companhia”. Era a mais legítima identificação de JK com a democracia. Nascia então o único herói nacional que enlaçou a oficialidade da história e o carinho popular. E até hoje pode-se ler nesta canção a saudade democrática de um país que já foi mais livre, mais JK.

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