Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Sebe conta com humor suas experiências cariocas enquanto espera pelo dia em que virá definitivamente para a Taubaté.

Quando requeri minha aposentadoria se me abriu um leque de possibilidades. Só, com filhos crescidos e carreira concluída, restava pensar um cenário para os dias que, supunha, deveriam ser mais calmos. De forma ingênua, desconhecendo o potencial da força de meus impulsos mais viscerais, assumi o velho pressuposto de que aposentadoria significava vida mais calma. Ledo engano. Mas na tentativa de acertar, medi as alternativas que apareceram, pois ainda antes dos 60 anos restava dimensionar novos rumos.
Viver no exterior logo foi opção rejeitada, pois queria ver os netos crescerem. Mesmo outros estados distantes que me chamavam para aulas não me atraíram pelo mesmo motivo. Ficar em São Paulo não era opção sensata, porque não mudaria muito e provavelmente trabalharia do mesmo jeito. A alternativa da volta para Taubaté está guardada para depois, pois é aí que pretendo terminar meus dias. Foi assim que vislumbrei a possibilidade de viver num lugar que sempre me encantou: o Rio de Janeiro. Ademais, uma oportunidade de trabalho poderia ajudar no estabelecimento de um projeto que deveria durar alguns anos.
Aluguei então um apartamento em Ipanema e frente à perplexidade de todos mudei-me. Confesso que de início não achava que teria dificuldades. Afinal, desde garoto sempre freqüentei a “cidade maravilhosa” e tinha contato com muitos cariocas. Sem exagero, diria que me achava conhecedor do tal “espírito carioca” e minhas constantes viagens teriam anulado o alcance de surpresas. Sem medo de errar, afianço que este foi um dos mais crassos erros de minha vida.
O Rio me é uma novidade diária. Talvez a maior e mais estranha delas resida no fato de ter me descoberto paulista aqui. É lógico que sempre vivi a disputa entre São Paulo e Rio, mas era algo intermitente, quase engraçado. Ao me deparar com um cotidiano que preza esta disputa como maneira de garantir a honra, logo me vi convidado a assumir alguns atributos que garantissem minha integração na simpática tribo local.
A primeira delas foi torcer pelo Flamengo e o critério de escolha foi fácil: se em São Paulo sou Corinthiano, pelo tamanho da torcida, no Rio seria flamenguista. Troquei a imensa simpatia por São Francisco pela devoção a São Sebastião e, mesmo achando que perdia na substituição dos passarinhos e demais animais que forma o imaginário do santo de Assis, vi nas flechas cravadas no corpo do mártir um certo heroísmo simpático.
Com escolas de samba nunca tive problemas, pois como outros taubateanos – a Duda e o Flávio Sapatão que o digam! – Mangueira sempre me cativou e não tinha outras preferências sambísticas sérias em São Paulo. Mas tudo isto foi pouco.
Lembro-me de uma vez que ao entrar no táxi, com poucas palavras disse ao motorista? “por favor, vamos ao aeroporto”. Pois bem, bastou isto para que ele dissesse “o senhor é paulista”. Espantado perguntei como sabia e ele respondeu que só paulista pede primeiro “por favor”. E então comecei a prestar atenção em detalhes nunca d’antes imaginados: em elevador, por exemplo, os cariocas não se cumprimentam como fazem os paulistas, mas olham para seu rosto e contam sonhos incríveis e até proibitivos.
A questão do jeitinho quase me fez voltar, pois é muito agressivo dizer “não” em filas, seja em supermercado ou cinema. Uma das diferenças que mais notei foi nas feiras e isto, não só pela diferença na qualidade dos produtos, mas também, e principalmente, pela ausência de japoneses. Mas, há mais alegria nas feiras cariocas. Os temas do cotidiano são traduzidos imediatamente e em conversas sempre animadas somos integrados e logo trocamos receitas.
Todo este exercício de vida tem me levado a uma revisão conceitual do que é ser paulista no Rio. E estabeleci regras de convívio que aliviam as diferenças. Entre outras, por exemplo, aprendi que é relevante dizer que sou “cariolista” ou “paulistóca”. Isto agrada, mas outro dia, para maior perplexidade minha, ouvi algo que me encabulou. Alguém, inteligente e irônico, ao saber que era “de São Paulo” disse: “ah! Você é mais um civilizador do Tietê”. Seria então desses “que se aposentam e vêm ao Rio se preparar para a outra vida”. Sem saber se era um elogio ou ataque, voltei pela praia pensando que no fundo há algo de verdade nisto. Uma verdade tão real como a praia de Copacabana, o Pão de Açúcar ou o Corcovado.

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