Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


“eu vou levar a personagem principal
em minhas mãos... e me levou”
Flávio Venturini/Jane Duboc

Era um sábado! Ou seria domingo? Também não sei se a luz indecisa entre o claro e o escuro era da manhã ou do entardecer. Tenho certeza do verão. Nu, sentia meu corpo livre na inércia do nada. Vazio solene. Lembro-me também que havia brisa, leve, mas estava além de minha pele e longe arrepiava as folhas da única palmeira que insistia em olhar a praia. Eu andava. De vagar, andava. Entre o molhado e o quase seco me permitia perder na insegurança do sal e areia. Seguia para cima, não para o norte ou para seu avesso, era para o lado de lá que eu caminhava. Engraçado, recordo-me de que carregava uma sandália, um só pé, na mão esquerda. Não, não estava bêbado. Nem era o costumeiro êxtase de quem reza sem crer em deuses. Estava assim... só assim... só.

Quando me avistei vindo de tão longe não tive surpresa. Nada. Afinal eu estava sim... e assim continuei; sempre na minha direção. Teria descido de alguma nuvem fugidia? Ou fora o mar que me trouxe? Seria o espírito da mata decepada? Mas nem tinha importância: era eu que me vinha vindo sem espelhos, sem fotografia, sem retoque, sem roupa. Nem foi estranho, acredita? O meu igual-contrário veio até mim em passos simétricos aos meus. Vimos/fomos e indo/vindo. De vagar e respeitosamente encostamo-nos um ao outro. É preciso dizer que não havia música e nem se invertia cotidiano algum. Natural como a natureza, nus, nos tocamos. Houve um abraço longo, terno, algo sensual. Era bom me envolver em meus braços mesmos. Sabe, ainda sinto dedos contornando meu eu duplo. Completamente.

Estou convicto de que não nos falamos. Nem existiriam palavras cabíveis. O nada é silencioso, já se sabe. Mas costuramos vazios, afinamos propostas e resolvemos continuar a viver. Eu e eu, meu outro eu em mim. E mais, seria possível desistir depois de um abraço improvável? Confesso: experimentei o gosto pretérito do meu futuro.

Quanto tempo durou? Também não sei. Pouco importa, aliás. Guardo apenas a memória do tato e isso basta para saber que apesar de tudo o meu outro eu ainda me permite.

Não. Não me pergunte mais nada. Espirei o passado e volto para minha matéria. Simples matéria remoçada por ter tido coragem.



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