Por Mário Magalhães

Futebol

A cultura do pau-de-arara

Articulista da Folha de S.Paulo traça um paralelo entre a linguagem jornalística do futebol e a da tortura nos anos de chumbo


Basta que um defensor se enrole com a bola para o locutor do rádio ou da TV conclamar os adversários a marcar em cima. "Aperta, que ele confessa!", brada ao microfone. Não é só nas transmissões. Mesmo em mesas-redondas de respeito, de vez em quando sai um comentário sobre o zagueiro vacilão: "Se apertar, ele confessa".
Isso não é, ou não deveria ser, linguagem de jornalista ou desportista. É dialeto de torturador. É próprio de quem maneja a "coroa de Cristo", esmagando o crânio do torturado, e o pau-de-arara. Tortura-se em busca de confissão e informações. E para castigar.
Tortura e futebol se cruzaram na história. Os atletas da seleção iraquiana eram chibateados a mando de Udai Hussein, filho do tirano, a cada revés nos gramados. Hoje, no Iraque, quem tortura são os soldados americanos.
À CIA, a central de inteligência dos EUA, não passou despercebida a cena futebolística no governo militar que mais torturou no Brasil: o do general Médici (1969-74), que posava com radinho de pilha a ouvir os jogos, fazia embaixadinhas e se dizia torcedor de Grêmio e Flamengo.
Em documento de janeiro de 1972, a agência analisava: "A popularidade do regime de Médici tem subido desde que ele assumiu (...). Em parte isso se deve (...) ao seu sucesso em se associar à seleção vitoriosa na Copa do Mundo". No ano anterior, em abril de 1971, os analistas da CIA observaram que "os times de futebol [soviéticos] são populares em toda parte [da América Latina]".
Quando as tropas nazistas ocupavam territórios da União Soviética em 1942, jogadores ucranianos foram mortos depois que seu time, formado por trabalhadores de uma padaria de Kiev, derrotou um selecionado militar alemão. Três morreram a bala. Um sob tortura.
Três décadas depois, o governo soviético proibiu que sua seleção jogasse no Chile, onde o Estádio Nacional se transformara em centro de tortura e morte de prisioneiros do general Pinochet. No Rio, anos antes, a polícia surrou estudantes no campo do Botafogo.
Também na ditadura, o ex-boleiro Didi Pedalada virou tira. Em Porto Alegre, deu expediente na polícia política, conhecido estabelecimento de tortura. Participou do seqüestro de um casal de militantes uruguaios.
Em São Paulo, o policial militar Dulcídio Wanderley Boschilla batia ponto no Doi-Codi, maior concentração de torturadores do país. Do lado de fora, era árbitro de futebol com fama de durão. Em 1975, 34 presos o incluíram numa lista de funcionários que não "participaram diretamente das sevícias", mas que tiveram "inequívoca colaboração efetiva com a prática de torturas".
A despeito da barbárie, os presos políticos, na maioria, torceram pela seleção em 70. Recusaram a apropriação do futebol pelo ditador. Agora o jornalismo esportivo poderia, em um gesto civilizador, abandonar o linguajar de sádicos e criminosos.


 

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