Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Filmes documentários nunca foram o meu forte. Mas não tinha como resistir ao convite de uma cara amiga que além de tudo dizia pagar a pipoca. Era matinê...

Camelos Também Choram é um comovente cinema/documentário produzido por uma estranha aliança de alemães e mongóis. Filmado em 2003, sob o comando de Byambasuren Davaa e Luigi Falorni, só agora foi colocado no mercado, encantando desde a primeira cena. Mesmo dimensionando a vastidão das areias, não se esquece do pôr-do-sol, interiores das tendas e da beleza física dos figurantes, personagens reais que se auto-representam.
De saída, um velho, supondo contar história para crianças, desperta lembranças sobre a mitologia dos camelos no deserto de Gobi, interior da Mongólia e assim conta uma história dentro de outra história. E mais fábulas repontam ao longo dos 87 minutos em que uma família de pastores, na época dos partos das camelas, ajuda uma, a última, a dar à luz e salvar o filhote albino.
O difícil parto ou a coloração estranha da cria teria feito com que a parturiente o rejeitasse. São comoventes as cenas onde o filhote, buscando a sobrevivência, se vê preterido pela poderosa mãe. O leite da camela, alimento essencial no ambiente árido, ganha sentido mítico como alternativa da vida. Os camponeses tentam contornar a difícil situação, sem sucesso. As primeiras lágrimas são do recém-nascido, magicamente humanizado pela diferença do trato de uma outra criança, humana, bem amada pela família.
Um adolescente, Dude, e o irmão menor, Ugda, recebem a incumbência de ir à cidade mais próxima em busca de um tocador de violino pois, segundo lenda local a música tocaria o coração da camela e quebraria a rejeição. Arma-se então um ritual onde todos os personagens são envolvidos e, mediante a chegada do músico que acompanha uma mulher entoando uma canção lindíssima, por fim, a camela chora. Copiosamente. Cena impressionante...
A par da trama lírica, há sutilezas incontáveis na narrativa linear. O ritmo é uma delas. Com tempo cronológico seqüente, nas cenas reais – o parto, por exemplo – tudo é muito lento e coerente com o lócus desértico. Poucas palavras e personagens da vida diária convencem o público à veracidade da história que transborda ternura e comoção.
Mas, é na viagem dos meninos até a cidade que se esconde a perversidade do diretor que ameaça o espectador ao mostrar que toda a poesia daquele mundo está ruindo pela chegada da modernidade. Televisão e motocicletas, sorvetes e dinheiro vivo, são alguns dos elementos reclamados pelos pequenos que docemente querem levar para o longínquo as experiências do novo.
Em cena emocionante, lá pelo meio do filme, em reunião noturna na tenda, o avô da família começa uma linda história sobre as razões de o camelo ter ficado fora do zodíaco mongol – diz a lenda que o Criador o compensou com uma parte de cada animal: como o rabo da serpente, os olhos da vaca. O mais jovens dos meninos, no entanto, o interrompe e pede outra história alegando que aquela ele já conhecia. Em contraste perfeito, a cena final, mostra o adolescente Dude arrumando a parabólica da televisão que havia chegado.
O filme não é piegas, não cai em nenhum lugar comum e comove pela ternura da trama feita por alguém que tendo uma boa história constrói uma narrativa sentimental. Recomendo este filme às pessoas sensíveis. Não o sugiro àqueles que gostam das inquietantes aventuras de Indiana Jones (Steven Spilberg que me perdoe), Guerra nas Estrelas ou Cole Porter. Além disto, é preciso dizer que o filme já mereceu vários prêmios importantes.
Em tempo: tive que optar entre a pipoca e as lágrimas. Nos melhores momentos, consegui alternar ambas.

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© Jornal Contato 2005