Por Roberto Romano
Professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp, romanor@uol.com.br
Artigo publicado no Correio Popular de Campinas em 26 de julho de 2005

Lula, o sobrevivente
Após os deboches contra a inteligência cidadã, nos “depoimentos” de Silvio Pereira e Delúbio Soares, pensemos sobre dois nomes: Celso Daniel e Paulo de Tarso Venceslau

Após os deboches contra a inteligência cidadã, nos “depoimentos” de Silvio Pereira e Delúbio Soares, pensemos sobre dois nomes: Celso Daniel e Paulo de Tarso Venceslau. O primeiro foi assassinado por questões que hoje exibem no PT algo mais do que a hegemonia política. Trata-se de atentado à fé pública. Recebi ofício da Câmara Municipal de Diadema (número 902) com a “Moção de Apoio ao Prof. Roberto Romano, da Unicamp, por suas críticas ao posicionamento do governo federal na condução da investigação do caso Celso Daniel”. Assumido pela Câmara, o voto foi encaminhado pelo vereador José Dourado. É preciso lutar contra a impunidade, inclusive na “esquerda”. Paulo de Tarso Venceslau precisa ser convocado para depor nas CPI’s, visto que, em 1995, ele escreveu uma carta ao então presidente do PT, Luiz Inácio da Silva, denunciando crimes contra o erário em prefeituras petistas. Os denunciados por Venceslau nada sofreram, mas o acusador foi expulso do partido por ordens de Lula. O fato mostra que o presidente da República reserva o castigo para quem denuncia falcatruas e incentiva o erro. Daí, para o que se passa atualmente no PT e no governo, não existe solução de continuidade.
Elias Canetti, em Massa e Poder, analisa o poderoso enquanto sobrevivente. A paixão o leva a praticar traições e vilanias para garantir o trono. Traição é técnica comum dos príncipes. Canetti cita o caso de Flávio Josefo, o historiador judeu que lutou contra o imperialismo romano. Em certo momento, na companhia de outros guerrilheiros, ele só encontrou abrigo num buraco sem saída. Cercado o grupo, ocorre um pacto de morte coletiva “para não perder a honra”. Josefo, astuto poderoso, convenceu os seus pares de que a matança eficaz seria a de cada um após o outro. Os indivíduos em fila terrível matavam o próximo da lista. Josefo arrumou as coisas para ser o último. Entregou-se aos romanos e viveu bom tempo. Todo poderoso sobrevive ao modo de Flávio Josefo. Quanto maior o seu Estado, mais gente segue para os braços da morte confiando em suas palavras. Hitler e Stalin levaram milhões para o Nada, mas não foram os únicos.
Luis Inácio da Silva sobrevive. Mesmo a hagiografia de sua origem humilde traça o roteiro ao modo de Canetti. Ele sobreviveu aos operários do ABC, esquecendo-os e deixando suas antigas reivindicações para trás. Se Josejo aderiu aos romanos, ele aderiu às “negociações” com a Avenida Paulista. Enquanto mantinha para as massas a fala de um radical (chegou a cogitar luta armada, já no regime civil), com os empresários ele usava o discurso conciliador. Jogando com essas duas faces, conseguiu, gradativamente, galgar os vários níveis de poder. Analistas do PT afirmam que ele sempre esteve acima das várias tendências que se matavam no partido. Na verdade, ele sobreviveu com a técnica de Josefo: enquanto as facções se destruíam, ele subia na escala do poder. Na presidência, silenciou quando foram expulsos os “radicais” em processos comandados pelo grupo “Genoino assinei sem ler”, “Dirceu nada vi de Waldomiro”, “Delúbio só eu somos o culpado” e “Pereira Land Rover”. Ele aceitou o “apagão” sobre Celso Daniel, inclusive, os atos de Dirceu para intimidar a imprensa e o Ministério Público. Todos assistiram a um triste espetáculo quando ele fugiu do debate sobre a morte do prefeito Toninho. Josefo rendeu-se aos romanos, ele rendeu-se às finanças. A Febraban o considera um herói, os empresários nem tanto. O último ato de sobrevivência, talvez o seu erro fatídico, foi a “entrevista” de Paris na qual o roteiro é o mesmo usado por Delúbio e Valério. Ele manda o PT às urtigas (“fui presidente do PT há muito tempo”, “o PT precisa se explicar”) e tenta… sobreviver.
As oposições, a imprensa, as pessoas sérias do Brasil precisam ter cuidado com o mestre da sobrevivência. É temerário aceitar “negociações” propostas por ele para “salvar a governabilidade”. Quando recebe ajuda de “companheiros” ou da oposição, Lula age como Josefo. Acuado, manda a polícia prender oponentes, para “equilibrar” as notícias fedorentas que vêm da sede petista. A sua polícia invade escritórios de advocacia. Confiar na sua palavra diplomática é seguir, como os amigos de Josefo, rumo ao desastre. Cautela deve ser empregada no seu possível impedimento. Sobrevivente, ele radicalizará a tese ridícula, mas sempre eficaz quando se trata de inteligências pequenas, de um “golpe”. E se for defenestrado sem evidências cabais de sua parceria na farsa imunda que seus subordinados representam nas CPI’s, um sebastianismo idiota (os sebastianismos sempre são idiotas) pode preparar seu retorno ao poder. Então, para que ele sobreviva, muitos brasileiros serão jogados nas águas de Caronte.


 

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