Por: Luiz Gonzaga Pinheiro - espesspei@uol.com.br

Água morna

Pela primeira vez neste outono-inverno, uso água quente para escovar dentes, lavar rosto, assumir o dia, pelo início. Uma sensação de conforto me invade, perigosamente. Sinto que estou beirando pelo ridículo, ao pensar que o conforto pode me dar idéia de riqueza, enquanto a realidade aqui por perto de mim, manda que não fique indiferente aos que saíram às seis da manhã, pés no chão, ainda escuro, para tanger o magro gado para a ordenha famélica da manhã.
A água quente de meu aquecedor, sim, me eleva a uma condição de “rico” local, como também me sugerem rico os grandes jardins de minha casa, piscina, sauna, hidro ao ar livre, salão de festas, aonde não vou, só entrando nele para saber se continua limpo, como convém. Festa mesmo, já não tem feito, por não ter o que festejar, menos ainda tenho as multidões que tudo celebravam, só por festejar, uma espécie de obrigação de estar feliz.
A piscina me arrepia de pavor, com suas águas límpidas e gélidas, onde já me joguei inconseqüente, meio báquico, meio dionisíaco, sarando de qualquer das influências, tão logo meu corpo louco tocava as águas glaciais, movendo-me desesperado para fora daquele envolvimento mortal, inóspito, antártico e branco.
Não me cobrem coerência com a sensatez, por me perder olhando para os jardins de minha casa, pura glória para meus olhos e proveito de passarinhos que por eles andam com a pressa de passinhos picados, nervosos, como se fossem gente açoitada pelas urgências bobas do homem. Eles mostram essa pressinha enganadora, pois na calma verdadeira de suas vidas não precisam de psicólogos, antidepressivos, pílulas, terapias grupais ou não. Acrescente-se que não têm problema de casa própria, morando suspensos em ramadas confortáveis de árvores.
À sauna não tenho ido, pois este país tropical me dispensa da assunção de naturalidade finlandesa, provocando o “choque” de quem sai do calor e mergulha na piscina, alegre por essa espécie de coragem que já não tenho, felizmente.
Eu me desgarro do paraíso onde vivo, agora sem as necessidades de antes, e me perco em caminhadas de todos os dias, sorvendo o ar matinal sadio e fresco, “refrigério”, para Camões.
Nessas horas, carrego sonhos comigo, apostando que a vida ainda me trará alegrias até não esperadas. Aposto nesse futuro que sempre está chegando para almas como a minha, esperançosas criaturas crentes que a fortuna nunca lhes abandonará, por isso jogando todas as fichas em números e nomes: ponho todo o poder de minhas esperanças na graça da mulher amada, aquela que entrará pela casa, florindo cantos, iluminando pontos escuros, deixando luz e cheiros por onde passar.
De volta da caminhada, outra vez me entrego à carícia da água morna, que me envolve como um abraço.

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