Espelhos (clique)


Por: José Carlos Sebe Bom Meihy

Carolina Maria de Jesus

Infelizmente, os jovens de hoje não sabem muito sobre Carolina Maria de Jesus
(1914? - 1977). Em termos de expressão popular, pode ser considerada uma das mais
desafiadoras manifestações da contracultura do século XX ocidental.

Figura emergida no contexto brasileiro e mundial com estrondoso sucesso editorial, com um livro intitulado “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, na década de 1960, Maria Carolina de Jesus chama a atenção até hoje por sua originalidade, embora faça mais sucesso no exterior.
No conturbado contexto da estrutura capitalista daquela década tumultuada, sobressaiu-se no Brasil em dois pólos distintos, porém complementares: dos pobres e dos ricos. Ao evadir-se da favela onde morava, contudo, não se integrou em outro espaço e, talvez, isto a faça personagem enigmática no quadro da modernidade. Por seus escritos fora dos padrões aceitáveis, catalisou atenções de quantos se mostravam preocupa-dos com algumas situações de mudanças do comportamento social que tangenciava o revolucionário: miséria como perigo; dilemas de integração de afro-decendentes; impacto de legiões de migrantes da área rural para as metrópoles. Carolina foi significativa, sobre-tudo, pelo que representou para o mundo ameaçado pelo reconhecimento do poder de forças populares que se exibiam emergentes, capazes de ações “perigosas”.
Sobre Carolina, escrevi, juntamente com Robert M. Levine, dois livros publicados no Brasil e dois no exterior, além de muitos arti-gos, notícias e reflexões sobre aquela obra. Em virtude disso, a família de Carolina per-mitiu que vistoriássemos 37 cadernos desta autora. Selecionei “O rei rico”, uma de suas estórias inéditas, a fim de apresentá-la à nova geração.

O REI RICO
Era uma vez um rei rico, rico, rico. Tão rico era o rei que seu castelo era de ouro, prata, esmeralda, rubi e de todas as pedras preciosas do meu Brasil amado. Suas roupas eram adornadas de brilhantes, pérolas e diamantes de todos os tamanhos. Era mesmo um rei muito rico. Sua mulher, a magestade, era linda, de olhos azuis como o céu do verão do meu Brasil. Ela era loura e de cabelos lisos. Tudo alí era bonito e luzente. Era tão explendoroso que até os empregados eram chiques, tinham carro, casa de alvenaria, co-mida limpa e escravos. Os escravos também eram lindos, fortes, com dentes certos que pareciam até madripérola. Era um reino perfeito onde até os pobres eram ricos.

Neste relato, a estética do brilho apresenta-se como ideal e o esplendor das pedras preciosas serve para mostrar a harmo-nia possível onde todos eram ricos e por isto devidamente enquadra-dos. Tudo parece ter um lugar perfeito e a ordem domina o quadro em que o cenário é suntuoso. Pre-side, pois, nesta trama curta um equilíbrio social sem nenhuma tensão. Na hierarquia apresentada rei, empregados e escravos não se ostenta conflito porque todos estão bem em seus lugares. Perfeito era o lugar onde até os pobres eram ricos, conclui.
A idealização estética tem, nesta estorieta, papel importante para o entendimento do mundo de Carolina que aceitaria até a pobreza desde que houvesse coerência e beleza. Os fatores determinantes da conformação dos “submissos” estava dada pelos seguintes valores que marcavam o “ex-plendoroso”: “os empregados eram chiques, tinham carro, casa de alvenaria, comida limpa e escravos” estes por sua vez “também eram lindos, fortes, com dentes certos que pareciam até madripérola”.
Neste enredo, curiosa é a presença do Brasil, com suas pedras preciosas. Mesmo abstraindo o fato de se tratar de um “reino” e da rainha ser “linda” pelos olhos azuis e cabelos loiros, a referência pode ser vista menos como apelo patriótico e mais como expressão de conforto dado tanto pelo possessivo “meu” como pela referência ao “céu do verão” brasileiro.
Ao retomar este tema, perplexo, fico pensando em tudo que estamos deixando de lado na cultura brasileira. Tomara que as novas gerações saibam ler mais e melhor es-tes testemunhos, raros, da literatura da pobreza.

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