Por Renato Barreiros, de Buenos Aires

Exclusivo: Cristiana Mesquita, da Associated Press

“Na Bósnia, minha casa foi bombardeada e eu tive que ser retirada dos escombros”.

 

Era uma vez, uma bailarina que, durante um espetáculo, se apaixonou pelo cinegrafista que filmava a apresentação. Após dois anos de namoro, o cinegrafista foi transferido para Londres e surgiu o impasse: casamento ou separação. A opção foi pelo casamento e, dessa história, surgiu uma das mais conceituadas correspondentes de guerra brasileiras. Não havia lugar para as sapatilhas em Londres e a solução foi trabalhar na comunicação. Na produção deu seus primeiros passos. Observando a repórter Sandra Passarinho, percebeu não só o dom, mas o gosto pelo jornalismo. Este é o resumo da história da brasileira Cristiana Mesquita, 47 anos, correspondente da Associated Press (AP), em Buenos Aires, que assumirá, em breve, a editoria geral da América Latina e Caribe da agência, em Washington. Na entrevista concedida ao Jornal CONTATO e Portal IMPRENSA, Cristiana fala sobre seu início na carreira de jornalista, as maiores dificuldades e retrata os momentos mais difíceis passados em alguns dos conflitos que cobriu, tais quais Bósnia, Afeganistão, Haiti, entre outros. Acompanhe.

CONTATO - Você esteve na Bósnia, Kosovo, Afeganistão, Haiti e Iraque. Como você foi enviada pela primeira vez para os países em conflito?
Cristiana - Foi um processo gradual. Desde que [fui] trabalhar para a primeira agência, a WTN que [depois] foi comprada pela AP, eu comecei como correspondente no Brasil. Depois, comecei a fazer algumas matérias pela América Latina. Naquela época, ainda tinha aqueles grandes distúrbios de rua como, por exemplo, no Chile e na América Central. O bicho ainda estava pegando e eu comecei a fazer um pouco esse tipo de matéria. Quando estourou a Bósnia, que é uma pauta enorme, eles começaram a buscar na agência, dentro dos quadros que eles tinham, pessoas com algum tipo de experiência comprovada. Não com guerra, porque eu não tinha experiência de guerra, mas [profissionais que] tivessem se saído bem nessas situações de conflito. Minha primeira guerra declarada foi Sérvia X Croácia. Desde lá, foi uma depois da outra.

CONTATO - Quando está em campo, você é pautada ou faz sua própria pauta?
Cristiana - Faço a minha própria pauta. Às vezes, vêm algumas sugestões da nossa editoria, que é em Londres. Mas, de uma maneira geral, a gente termina fazendo a própria pauta porque não tem muito o que Londres possa pautar. É uma decisão sempre nossa correr o risco de sair e buscar uma matéria. Londres não pode decidir isso pela gente. Então, normalmente, somos nós mesmos que pautamos.

CONTATO - Quais as principais dificuldades que uma mulher tem para fazer uma cobertura em um país muçulmano radical como o Afeganistão, por exemplo?
Cristiana - No caso do Afeganistão, [o problema] foi mais de língua, de idioma, do que pelo fato de eu ser mulher. Havia algumas coisas que eram anti-produtivas. Havia pessoas com quem eu falava que não me respondiam. Mas eles estavam [vivendo] um período muito interessante, que a mudança radical com [provocada] pela saída do Taleban. Então, ajudava porque eles tinham uma certa curiosidade. Eles estavam vendo, pela primeira vez, depois de muito tempo, mulher com cara de fora. Isso também às vezes valia como fator de aproximação. Hoje em dia, no Afeganistão, dá pra trabalhar. No Iraque é fácil, mas eu nunca aceitaria um trabalho na Arábia Saudita porque lá eu não posso dirigir, as pessoas não vão falar comigo, então, não seria improdutivo. Mas nos outros países, apesar de ter uns mais radicais, não tive dificuldades.

CONTATO - Qual é sua situação atual na Associated Press?
Cristiana - Estou como correspondente em Buenos Aires. Mas eu também peguei a editoria da parte do Conesul, que inclui Bolívia, Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai. Agora eu vou assumir a editoria geral da América Latina e Caribe, em Washington.


Cristiana entrevistando soldados norte-americanos

 

CONTATO - Por que você mora em Buenos Aires?
Cristiana - Porque eu liguei para Londres e disse que estava cansada de viajar, porque eu peguei um período muito duro, peguei três meses de Iraque. Aí eu fui para Nova York de férias. Estava há uma semana em Nova York e me mandaram pro Haiti. Isso foi no ano passado, no meio de uma Guerra Civil. Eu fiquei mais dois meses. Eu estava com os rebeldes no norte quando o [presidente] Aristide caiu. Depois, fiz o caminho de volta para Porto Príncipe.

CONTATO - Você é bailarina. Como foi seu primeiro contato com o jornalismo?
Cristiana - Eu nãosou não. Eu era bailarina. Me apaixonei por um cinegrafista e ele foi transferido pra Londres e eu fui [junto]. Estava muito difícil arranjar trabalho no balé em Londres. [Então] comecei a trabalhar com ele. Na época, eu tinha a idéia de ser cinegrafista. Adoro imagem, adoro câmera! Mas aí houve a mudança de filme para vídeo. As câmeras de vídeo eram muito grandes, muito pesadas. Comecei, então, a produzir, inclusive para a Globo. [Descobri] que havia uma divisão muito grande, quer dizer, não havia ainda na Globo, naquele época, a figura da produtora [que ainda] não passava de uma secretaria do jornalista. Continuei na Globo por algum tempo. Depois cansei e arranjei um trabalho como correspondente mesmo. Isso explica porque eu não posso trabalhar como jornalista no Brasil: nunca fiz faculdade de comunicação. É uma coisa engraçada, né? A editora geral da América Latina da Associeted Press não pode trabalhar nem na rádio Galinha da Borborema no Brasil porque não tem o diploma em comunicação. (risos)


Cristiana no mercado de Kabul

CONTATO - Como é a rotina de trabalho nos países em guerra? O que comia? Dava para tomar banho? Quais as principais dificuldades?
Cristiana - Em Bagdá, eu tomava banho todo dia, porque estava num hotel com uma condição mais ou menos. Em campo, com as tropas em Falluja, não tomava banho, só quando voltava pra base. No Afeganistão era complicado porque não tinha banheiro em lugar nenhum. Eu fiquei num vilarejo bem pequenininho. De dois em dois dias, eu esquentava um balde de água e jogava na cabeça. Aquilo tinha que valer como banho, porque não haviam outras condições. A rotina é acordar de manhã, fazer a ronda com os seus contatos, saber o que está acontecendo, planejar as saídas com a equipe, voltar com matéria, editar, fazer o texto. No final, o trabalho é praticamente o mesmo do que fazer uma reportagem em Buenos Aires. Só tem que ter muito mais cuidado com o planejamento dessa matéria porque qualquer coisa pode acontecer no seu trajeto da sua base até o seu local de trabalho. Mas a rotina é mais ou menos a mesma.

CONTATO - Já teve medo de morrer nestes trabalhos?
Cristiana – Várias vezes. Você não vai a essas guerras todas sem passar por várias dessas situações. Na Bósnia, por exemplo, minha casa foi bombardeada e eu tive que ser retirada literalmente dos escombros. No meu último dia no Afeganistão, eu tinha que fazer uma matéria sobre minas terrestres e quase explodimos junto com um cara, ou seja, ele explodiu e nós não. Foi muito perto, chegou a machucar. No Iraque, agora em Falluja, eu estava com as tropas e avançamos muito. Os insurgentes, que estavam a nossa frente, fizeram um recuo e nos pegaram por trás e nós ficamos presos bastante tempo esperando reforço. A uma certa altura, depois de quatro horas, eu já estava achando que não ia chegar nunca. Mas, finalmente, chegou e nós conseguimos sair de lá. Enfim, são varias situações em nível maior ou menor [de risco].

CONTATO - Quando você estava com as tropas, existia alguma restrição dos norte-americanos querendo ver o seu material, o que você estava escrevendo?
Cristiana - Havia sim. Eles normalmente costumam controlar o seu acesso aos locais. A primeira censura começa aí. Depois, normalmente, eles pediam para ver o nosso material, porque, segundo eles, nós não podíamos mostrar, por exemplo, americanos mortos ou feridos. Não podíamos dizer onde nós estávamos exatamente. Eles diziam que seria passar informação ao inimigo. Enfim [havia] esse tipo de controle. Existe censura sim, mas é uma censura mais militar do que política.

CONTATO - Existia alguma cobrança do tipo ”vocês fizeram uma matéria desfavorável a nós”?
Cristiana - Tinha sim. Alguns jornalistas perderam o seu status por causa disso. E é uma situação muito difícil porque você fica imaginando se vale a pena estar lá com todas essas restrições. Mas, como eu trabalho para uma agência, cada vez que eu estou com as tropas americanas tem uma pessoa nossa que também está com os insurgentes. A gente, dessa maneira, tenta controlar e equilibrar um pouco a nossa cobertura e a AP é muito exigente com relação a esse tipo de detalhe.

CONTATO - Pretende voltar a morar ou trabalhar no Brasil?
Cristiana - Pretendo, pretendo sim. Já morei várias vezes fora do Brasil, mas acabo sempre voltando.

CONTATO - Conte um pouco sobre sua vida: onde nasceu, cresceu.
Cristiana - Eu nasci no Rio de Janeiro, cresci no Jardim Botânico, sou uma cidadã Jardim Botaniquense, com convicção. Quando voltei da Europa, fui para o Jardim Botânico, que é a minha área.

CONTATO - Você tem dois filho. Algum deles quer seguir a carreira de jornalista?
Cristiana - O meu filho mais velho começou jornalismo na PUC –RJ, mas graças a Deus viu a luz e mudou pra desenho industrial. Minha filha diz que não quer fazer jornalismo.

CONTATO - Existe algum dos seus trabalhos que você considera o mais marcante?
Cristiana - O Afeganistão. Parece aquele programa antigo Twilight Zone. Parecia que eu estava entrando numa outra dimensão. Nada do que eu conhecia, nada da minha experiência valeu porque eu estava entrando numa situação completamente diferente. Foi uma experiência que teve todo um clima de aventura: como entrar, como chegar. Foi uma viagem completamente louca, atravessando montanhas, ficar com mais dez jornalistas numa casinha de barro enfrentando uma situação muito difícil. Num determinado momento, todo o estoque de comida que havíamos levado tinha terminado, a cidadezinha não tinha mais comida e [tivemos] de racionar comida. Foi uma coisa bem [marcante]. Além da loucura que é aquele país. É como você fazer uma viajem no tempo, onde era tudo ainda muito primitivo. A dificuldade de lidar com um povo tão isolado, tão diferente. A dificuldade e o prazer também de descobrir uma nova cultura uma nova maneira de pensar. Enfim, acho que para mim foi a coisa mais importante. Além do que foi a oportunidade também, em muitos anos, de fazer algo para o Brasil. Eu estava lá fazendo o meu trabalho, mas eu também podia falar com o Brasil. Eu estava fazendo isso para Globo e foi muito legal.

CONTATO - Houve alguma experiência interessante que foi decisiva para você continuar no jornalismo?
Cristiana - Eu tinha uma enorme admiração pela primeira jornalista com quem eu trabalhei que foi a Sandra Passarinho. Eu gostava e descobri que, apesar de estar mais interessada na parte técnica, eu ficava fascinada com a facilidade que ela tinha para escrever, pela maneira que ela conduzia as entrevistas. Então, ficava tentando uma coisa assim de tamanduá chupa cérebro, de ficar aprendendo com ela. Depois, descobri que era uma coisa que eu gostava, que eu fazia com vontade, que eu fazia bem. Agora, antes disso, o que eu sempre conto é uma historia de 1969 [quando] o homem chegou a lua. Se você checar a data em que isso aconteceu no Brasil, [verá que foi] bem no meu aniversario. A data oficial é 20 de julho mas, por causa da diferença de horário, foi 21 de julho, que é meu aniversário. Estava todo mundo na sala, eu era bem garota, e [as pessoas] diziam: “que coisa impressionante! O homem está na lua”. A tecnologia que levou o homem à lua e a única coisa que eu começava a pensar era: “que impressionante que eu estou vendo isso ao vivo”. Eu já estava fascinada com aquela comunicação imediata. Além disso, existem outros indícios durante a minha vida que hoje eu penso e talvez já indicassem que eu tinha jeito para coisa. Na escola, por exemplo, as meninas vinham e diziam: “posso te contar um segredo?” E eu dizia: “não conta que você vai perder a amiga porque eu vou espalhar pra todo mundo, vai ser uma desgraça”. Essas pequenas coisas me levam a crer que esse tenha sido o meu caminho desde o início.


Cristiana entre populares no Afeganistão

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