Por: Luiz Gonzaga Pinheiro - espesspei@uol.com.br

Da. Laura e “Seu” João

Vivia bem, obrigado, o casal de velhinos, impertigados em sua avan-çada e sadia idade. Beiravam os oi-tenta, ela pouco mais nova, senhora de cheiros e sabores históricos na cidadezinha onde viviam desde sem-pre.
João Alves da Cunha já tivera seus dias de glória. Em um deles, saudou o governador com um discurso infla-mado e agradeceu “pelos relevantes serviços prestados à cidade”. Na cidade, poucos conheciam esse seu lado retórico, eloqüente, capaz de levá-lo a um estado de exaltação insuspeitado até por amigos mais próximos, os de opa e os de jogui-nhos inocentes de dominó, em plena praça da igreja.
Nhá Laura, além de dominar chei-ros e sabores, era respeitada pelas rendas que fazia, além de serviços devotados à paróquia, onde mantinha como impecáveis os adereços de linho usados nas missas.
As coisas boas também acabam, sentenciou o médico especialista procurado para uma providência deli-cada e humilhante, levada a cabo com um profissionalismo acanhador. Cunha mal podia acreditar em seu infortúnio, invadido que fora pelo des-pudor da Medicina, que recomendava outros exames, agora de laboratório, um procedimento simples, se compa-rado com a invasão de que fora víti-ma.
Em burgo pequeno, onde tudo e todos sabiam de tudo e de todos, espalhou-se a notícia com o poder de uma forte exalação atmosférica, im-possível de ser contida nos domínios do casal. Cunha havia relatado tudo a Laura e ela, que não era senhora de muitos segredos, se encarregara espalhar a desdita de seu marido.
O que era uma educada rotina, pas-sou a ser uma enorme ofensa, embo-ra as aparências cuidassem de man-ter o recatado nome do casal.
Quando ouvia a saudação de toda vida, da. Laura tinha arrepios de ver-gonha e ódio: “Como vai seu Cunha, Nhá Laura?”. Ardia de raiva, imagina-va respostas brutas, tão indelicadas como era impossível imaginar em dama sabidamente educada.
De inocente cumprimento, a sauda-ção passou para o degráu de proposi-tada malícia, agora do domínio públi-co e – diga-se – privado. Um dia, o desavisado pároco, amigo e grato por todos os favores que da. Laura conti-nuava a prestar, saudou sua ser-va:”Como vai seu Cunha, Nhá Lau-ra?” Laura disparou seu berro contido por tanto tempo: “Até o senhor, pa-dre?; muito bem e às minhas custas”.
O padre, um santo desavisado, não se conteve em sua inocência: “não sabia que vocês estavam em dificul-dade. Posso ajudar?”

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